quinta-feira, 22 de abril de 2010

Bariloche, 11-15.03

A pérola do turismo brasuca me dava coceiras, ao pensar nos clichês: muita pompa e badalação, preços altos, natureza demasiadamente explorada. Brasiloche, tua fama te precede. Por este lado, foi uma grata surpresa. Decerto que no verão trata-se de uma cidade um bocado diferente, pois não há neve alguma no cerro Catedral. Chegando em Março, no estoy acá para esquiar e me empanturrar de chocolates del Turista. Assim também parece haver menos brasileiros. Não me entenda mal, apenas não estou com tanta saudade ainda, e me agrada ter uma noção mais pura do local.
A visão do lago Nahuel Huapi é um lindo cartão de visita. Inspira à paz e tranquilidade, por supuesto, mas também instiga a subir mais alto e ter uma noção mais larga do que chamam de região dos lagos. Decido esnobar a aerosilla (teleférico) para subir ao cerro Campanario. Nada de mais, já que 25 minutos de caminhada foram o bastante para chegar àquela que a National Geographic considera uma das vistas top 10 do mundo. De fato, uau.
Hanna tenta aprender malabarismos com Matías, um chico porteño muito legal que ela conheceu no albergue. Artista de rua, que também se garante no ping-pong. De volta ao albergue, pomos na mesa a velha rivalidade Brasil-Argentina. Depois de muito treinar (perder), enfim consigo derrotá-lo(ooo!!!). Tudo se resolve com uma boa dose de perseverança e cerveza, claro... Aqui eles têm versões litro das minhas favoritas Heineken e Stella. Otra, por favor. Só não consigo persuadi-lo de que Pelé é melhor que Maradona, e melhor não insistir no assunto por aqui. O Matías nos ensina a fazer a típica milanesa que tanto encanta os hermanos, enquanto ajudamos com a ensalada. Comemos um montón, e confraternizamos ao som da voz e violão do maluco beleza habitué do albergue. Entre outras pérolas pop locais, um bocado de Fito Paez, ele não deixa de fazer a média comigo, mandando sua versão "libre" de Garota de Ipanema. Ok, viva Brasil. Esse mesmo artista-alegre-cujo-nome-eu-não-lembro calhou de ser o primeiro ser humano a me dizer que conhecia minha querida Recife nesta viagem. Empolgado por não ter que repetir a velha história "ok, é uma grande cidade do nordeste brasileiro, 800km ao norte de Salvador", perguntei a ele o que achou da veneza-brasileira-capital-cultural-melhor-carnaval-do-mundo, ao que ele me disse: "Recife huele... mal." Recife fede? Como assim, é só o que você tem a dizer? Mas é só o mangue, natureza em ebulição! Pqp...
Dizem que o (Walt) Disney tirou de Bariloche a inspiração para criar o Bambi. heheheh, vou poupar os argentinos de piadinhas infames. No outro dia, decido conhecer tais bosques encantados, peregrinando até a "Cascada de Los Duendes". Hermosita, pero muy chiquita, nada demais. Se foi por aqui que ele andou, devia estar mucho loco em alguma substância para imaginar os bichos. O passeio valeu pelo encontro con una pareja muy especial: Choncha y Isidoro, uma golden retriever e um labrador que brincavam de buscar madeira no lago Gutierrez. O hiperativo Isidoro só quer saber de um pretexto prá correr, nadar ou latir. Já a Choncha, que linda, faz até pose. Que espertos esses bichos! Yo quiero un golden para miii...
Já recomposto das longas aventuras patagônicas, o Sol brilha bonito e decido encarar os 30km de bicicleta no circuito chico do Lago Nahuel Huapi. Depois de algum treino no calçadão da praia de Boa Viagem, não há de ser nada demais. Ledo engano. Subidas e descidas fazem a graça do muntain bike, mas tornam a coisa mais difícil, e perigosa para principiantes. Tentando fazer como manda o figurino, pedalo pelo acostamento com dificuldade. Numa descida mais complicada, pedregulhos no caminho e eu invento de frear a dianteira... crashboombangrastaplofff. Graças ao judô na infância, caí com estilo suficiente para salvar-me de fraturas. Essa megaescoriação no cotovelo não deverá ser mais que um souvenir dos lagos. Sem tempo para remoer (ninguém viu, ninguém viu), recomponho-me e assumo a vontade de competir com os carros pela pista, mais regular portanto confiável. E assim fui, agora con mucho gusto, ganhando confiança na bici, chegando aos 40 (50?) km/h nas descidas. Sensação de liberdade incomparável. Como os gringos costumam dizer: no risk, no fun. Enfrentar os riscos e superar os próprios medos nos enchem de vontade de poder, deixando a liberdade mais palpável. Lembro da minha mãe - que nos fazia prometer jamais andar de motocicleta - então sigo dosando no freio de trás, siempre. Parece que amor e liberdade não são lá muito compatíveis, ao menos em nossa cultura. Por ora, vou curtindo as paisagens. Elas valem o sacrifício. Por ti, derramo meu sangre, Argentina...Bariloche também é famosa pela sua badalação, entons nos vamos: arriba, abajo, al centro, adentro! Depois de semanas saludables de naturaleza y luz, acá finalmente tenho contato com a noite argentina típica, em que nada acontece antes das 2 ou 3 da madruga... Carajo, ainda bem que o energético tá bem mais barato do que no Brasil, além de todo o resto. O câmbio favorece a nossa esbórnia. Que puedo hacer yo, pero bailar. Também aqui enfim conheço os famigerados ritmos locais: cumbia (mais na versão electro) e reggaeton. Nada a ver com reggae! Estourou hace pocos años, parece, e faz a cabeça (quadris e todo o resto) de 9 entre 10 chicos daqui. Algo comparável com o funk carioca, no sentido mais sensualmente popular ou sujo da coisa, carrega fuerte na identidade latina. Mais um indício desse acerto de contas com o resto da Sudamérica? Bem, não é hora de analisar, sino que de requebrarrrr...

quinta-feira, 18 de março de 2010

El Bolsón, 08-10.03.2010

Esta pequena cidade na região dos lagos é porta de entrada para o Parque Nacional Lago Puelo, mas é mais afamada pela sua atmosfera hippie, com direito a feirinha típica três vezes por semana. Reza a lenda que nos anos 70 uma turma do musical "Hair" passou pela zona e resolveu quedarse. Ficamos no albergue, eu, Hannah, Micaela (da Áustria) e 3 alemãs. Vamos ao tal lago Puelo, que impressiona pela atmosfera de... praia! Poizé, no meio da Patagônia andina, bermudas, boias e biquinis. Encontrei minha sombra verde e li um bocado. O mais legal da tarde foi certamente conversar com Hanna. Uma garota pálida com jeito de naturalista, descolada e despojada em suas calças auto-remendadas, Hanna me pinta um retrato marcante da mulher finlandesa. Como psicóloga, até que pudemos trocar ideias sobre os mesmos tipos de conflitos profissionais. No geral, entretanto, ficava evidente o abismo cultural latino-escandinavo. Não pude evitar notar que sua aura de independência lhe tirava um pouco do charme/delicadeza femininos que estaria brasileiramente esperando (aqui correndo o risco de ser tachado de machista). Como simpatizamos, achei por bem provocá-la um poquito. Entre uma e outra indagação das coisas da vida, disse-lhe que me parecia que a total emancipação feminina detona o romantismo e gera uma crise no papel do homem que apenas acentua individualismos. Machos inseguros por não sentir-se mais necessários, uma boa receita para levá-los a fugir pelo álcool para sonhar com mulheres latinas, supostamente esposas mais amorosas e dedicadas. Não se precisa assemelhar as mulheres dos homens, posto que somos diferentes por natureza. Direitos iguais, papéis nem sempre. Recordava-me de "Clube da Luta", livro e filme marcantes dos anos 90, sintomático dessa nova busca de identidade masculina numa modernidade que de tão livre, materialista e desprovida de ideais, parece deixar-nos a todos ansiosamente indefinidos e insatisfeitos. Bueno, me gusta viajar afinal...
No outro dia, fomos à famosa y hermosa feirinha hippie de Bolsón. Depois de comer um waffle com morangos, amoras, framboesas e chantilly (muy rico), andamos por entre as barraquinhas debaixo de sombra. Enquanto Micaela e Hanna se esbaldaram nos cosméticos e geleias naturais e nas bijuterias típicas (pareciam especiais, de fato), eu me ocupei de comprar souvenires para cunhadas e alfajores caseiros para miiiiiim, qual é o problema? heheheh, também aí me rendi ao típico rango de rua argentino: pão com milanesa, tomate e alface. Se não é uma iguaria, ao menos cai melhor que o choripán (linguiça no pão)...
Ao final do dia, já no albergue campestre, rústico e barato (pero con wi-fi!) que escolhemos, uma bela compensação: parrilla! O churrasco e la ensalada se fizeram acompanhar bem por um vinho barato, e (haja) cerveza Quilmes. Después de alguns copos, bien, buenas noches...

De El Chaltén a El Bolsón, 07.03.2010

Ruta 40. Famosa via de ligação das províncias austrais da argentina. Tengo que sair de Santa Cruz hasta Río Negro, atravessando Chubut em toda sua extensão. Mais de 30 horas de estrada. Haja poeira pelos longos trechos de rípio. E muita patagônia na janela: pradarias intermináveis, carneiros, ovelhas, carneiros, vacas, cavalos, ovelhas... gente aqui e acolá.
No ônibus, todos turistas. Franceses, ingleses, coreanas, israelenses, alemães, argentinos... um verdadeiro Bacurau de Babel. Nada contra. Faz parte da graça da coisa, não se entender quase nada do que se ouve. Assim também fica mais fácil conhecer outros andarilhos solitários. Ao meu lado, uma moça loira sardenta que parece saída de algum seriado da BBC. Bingo, trata-se de uma inglesa, Lizzy. O apelido dela logo me remete a um personagem deveras marcante na literatura inglesa: a Elizabeth de "Orgulho & Preconceito". Jane Austen sabia construir uma heroína romântica de carne, osso e nervos. Numa época em que as mulheres tinham pouca voz e deviam se conformar às limitações da sociedade patriarcal (isto é, aspirar a um casamento vantajoso), a Lizzy tinha personalidade de sobra para desconcertar o impávido sr. Darcy. Uma moça culta, inteligente, sensata e autodeterminada, mas não menos humana, terna, suscetível e passional (portanto propensa a preconceitos). Embora a ficção bem construída faça a gente sentir que ela existe, hoje em dia é difícil de imaginar uma mulher assim (não vou entrar nos méritos do Darcy, para não me deixar complexado). Conscientes desta imagem e peso de seu nome, minha vizinha de ônibus teria que ser alguém no mínimo legal. E se provou de fato uma boa companhia para a lo(ooooo)nga jornada.
Coincidentemente de fato, a Lizzy calhou de conhecer uma recente amiga minha quando em Chaltén: Marjolein. E qual não foi a minha surpresa ao descobrir que Lizzy se tratava de ninguém menos que a afamada Cinderella de Torres (a moça que perdeu o sapato no rio). De novo, Patagônia vila de pescadores. Ela me conta que recuperou um dos pés, mas o outro se foi, gone with the stream. Assim descobri o fim da história: ela tomou um par de tênis velhos no refúgio e eventualmente chegou ao fim do W, inteira, mas não incólume. Com o sapato velho seu pé esquerdo inchou e se tornou um fardo para esta viagem. Estava se virando à base de comprimidos. Ofereceu-me um para dormir, agradeci recusando, e como psiquiatra só pude sugerir a ela que não abusasse. Como médico, observei que seu pé estava efetivamente inflamado e com sinais de infecção local. Ela me disse que já tinha tomado uma dolorosa injeção glútea aplicada por alguém que me descreveu como um farmacêutico tarado. Mardito Benzetacil. Recomendei-lhe antiinflamatório, alguns cuidados tópicos, e boa sorte. Retorno em 1 semana, em Bariloche. Se o destino nos convier.
Também nesta longa viagem conheci a finlandesa Hannah. Montana. ha ha ha. Estava cansada de ouvir essa piadinha. Aparentemente a heroína adolescente americana é tão popular aqui quanto no Brasil. Vagamos pelas calles de Perito Moreno (a ciudad, não a geleira) depois do almuerzo. Quer dizer, na hora de la siesta, na Argentina como na España, quase tudo cerrado das 14 às 18:00. Aí a vila fica realmente monótona.
As cidades argentinas parecem ter um tanto em comum. Desenvolvem-se em torno de uma avenida San Martín, com alguma avenida Júlio Roca paralela, e as secundárias bem simétricas, assim planejadas ao que parece (não aquela humana zorra brasileira). Fica-se familiar com elas rapidamente, e é difícil se perder. Sentamos num gramado para ler enquanto passa o tempo.
Em princípio, pode parecer legal que todos os países sulamericanos tenham cada qual seus próprios heróis nacionais para estampar nas placas e notas, sobretudo os tais "Libertadores da América", como Bolívar, San Martín ou O'Higgins. Como Tiradentes e Bernardo Vieira de Mello foram derrotados, difícil algum brasileiro ter orgulho de sua independência conferida pela metrópole portuguesa em favor da mesma família real (nada burros os patrícios). Assim fazemos pouca questão de ter uma "Avenida Dom Pedro". Por outro lado, a conquista pacífica da independência permitiu que não nos esfacelássemos como a américa hispânica, e também não precisamos de animosidade contra nossos vizinhos a não ser no futebol. Chilenos, argentinos, bolivianos, peruanos, equatorianos, têm história de conflitos por fronteiras que deixaram marcas até hoje. Em nossas conversas, argentinos já se referiram a chilenos como "afanadores de tierras", mas criticam a idiossincrasia de seu governo conceder as mesmas terras ao interesse do "capital estrangeiro". A coisa se complica se pensarmos nas cagadas brasileiras no desgraçado Paraguai, que aliás é ignorado por 9 entre 10 mochileiros. Se tinha que cantar louvores ao Duque de Caxias no exército, fazia-o com crítica, depois desiludido e indiferente. Amar suas raízes é bom, como é boa a comida da mãe, mas nacionalismo mais me parece bobagem - senão francamente nocivo enquanto arma de manobra em massa. Vale lembrar que Nazismo é corruptela de Nacional-Socialismo. Além do fervor "bolivariano" de Chávez, e suas perigosas baboseiras escrotocráticas. Prefiro guardar a bandeira para a copa do mundo ou olimpíadas. Legal mesmo seria se partilhássemos a cidadania terráquea. Um mundo de todos, sem fronteiras, como dizia o Lennon. Rest In Peace (sem ídolos ou mártires também).

El Chaltén, 06.03.2010

Último dia em Chaltén, hora de aproveitar o céu azul e colocar uma montanha espetacular na frente. Como a Johanna porteña já foi, juntamo-nos eu, Aurélien e Adrianna para a peregrinação ao Fitz Roy. O Brian decidiu fazer sua trilha com outros americanos que conheceu no albergue. Aparentemente carregam uma garrafa de vodka para "get wasted" lá em cima. Já o tinha encontrado bebo ao voltar ontem à noite, então parece tratar-se de american way of life adaptado para as montanhas andinas (jejejej). Poderia ser divertido, mas prefiro ficar com meus sanduíches de jamón y queso, já que a jornada promete alguns ofegantes flashbacks do Circuito W. Três horas de subida para chegar ao "Lago de Los Tres", aos pés do Fitz Roy, mais 4 horas de volta até Chaltén. Depois de Torres Del Paine, tenho a grata sensação de que não preciso temer esse tipo de desafio. Claro, também ficou a certeza de que não posso subestimar os obstáculos. Mais algumas barras de cereais, peras e ciruelas (tipo de ameixa amarela gostosinha) serão bem-vindas.
Ao longo do caminho, vamos conhecendo diversas facetas daquela que deve ser a montaña mais espetacular da Patagônia. Não chamam Chaltén de paraíso do Trekking por acaso. As trilhas são diversas, e qualquer foto ganha ares de prêmio da National Geographic com o imponente Fitz Roy ao fundo. O capitão do Beagle adentrou com Darwin em alguns rios patagônicos, mas parece que, assim como el perito Moreno, nunca teria conhecido o monumento natural que foi rebatizado com seu nome. Difícil ter noção da sorte que temos nesta era de mundo na mão. Aventuras modernas talvez percam um bocado da grandeza épica dos tempos do Conrad, por serem acessíveis a qualquer mortal, mas ao menos aqui a paisagem não mudou com o tempo. Não muito. Nuvens passageiras criam uma ilusão de uma megachaminé de granito. Ó linda situação para um churrasco. Brincadeirinha.
A ladeira final parece tão interminavelmente íngreme quanto prometia ser. Não há razão para pressa, então vale curtir a vista (pretexto para recuperar o fôlego). Miro a pomposa montaña. Cada vez, "está mais perto do que longe". Graças ao tenente Diniz por ter-me ensinado essa pérola do niilismo andarilho. Vale prá qualquer trekker otimista em qualquer lugar do mundo.
O esforço crescente só aumenta a expectativa da recompensa. E finalmente, ao chegarmos aos pés do Fitz Roy, deslumbramento embasbacante total. Com o perdão do clichê: no hay palabras. Carajo. Putz. Melhor não, tudo soa como blasfêmia ou leviandade perto do poder e perenidade que inspira a naturaleza acá. Sí, somos tão pequenos, fracos, vulneráveis, fugazes, mas não insignificantes se podemos testemunhar e atribuir valor a obras tão divinas. Agora entendo quando se fala em "santuário natural"...Depois da empolgação inicial, descemos em silêncio até a margem da lagoa. O azul profundo fica ilusório ao nos aproximarmos: não passava de reflexo do céu. A realidade torna-se transparente de perto. Podemos quebrar a liturgia e curtir o êxtase turístico. Sin dejar basura, claro. A água parece bem mais atraente que a do lago Torre, ou de qualquer outro que tenha visto até aqui. Nadar até a geleira do outro lado seria possível, se não se considerar as cãibras generalizadas que levariam qualquer maluco a agonizar de frio até a morte. Bueno, venho de neoprene ultra-térmico (?) da próxima vez. Faço algumas poses de novela mexicana com Adrianna, digo, "Maria Estela" - soy tu Carlos Daniel esta tarde. É siempre animador quando o caminho de volta é para baixo - en nuestra católica sudamérica, todo santo ajuda. Pena que só podemos cantar juntos se for algo da Xuxa, cada qual na sua versão. Engraçado (digo, gracioso) las cosas kitsch que tenemos en comun, los latinos.

Para a noite, combinamos uma despedida econômica de andarilhos no albergue da Johanna. Spaguetti ala bolognesa, clássico. Como não poderia deixar de ser, duas botillas de viño malbec de San Juán y Mendoza. Explico a eles a tradição brasileira: "beber sem brindar,..." Qualquer cena se torna exquisita (deliciosa!) depois de 8 horas de trilha, resultado da satisfação pelo esforço (e das barras de cereais). Infelizmente no posso quedarme emborratchado (bebum) con el francés y las chicas esta noche. Despeço-me ao fim da primeira garrafa. Tengo que tomar el omnibus das 23:00 para El Bolsón, e será um longo trecho transpatagônico. A vida de viajante, com encontros e desencontros sucessivos, amizades imediatas e fugazes tem seu próprio ritmo contemplativo, que paradoxalmente acentua a celeridade da vida. Hay que aproveitar o momento. Sín embargo, también existem os reencontros inusitados. Espero sinceramente reencontrá-los, para completar esta etapa alcoólica em outras bandas. Quizás? Para tanto, viva el Facebook. Saúde!

quarta-feira, 17 de março de 2010

El Chaltén, 05.03.2010

No dia seguinte, eu e o Brian decidimos encarar um trekking mais decente. Céu nublado, hmmm... não seria a melhor hora para atacar o Fitz Roy (célebre montanha argentina / atração principal da cidade). Então vamos ao lago Torre, que fica a menos de três horas da cidade. De longe, está encoberto por nuvens, mas vamos lá. No caminho conhecemos uma família peculiar: um alemão casado com uma chilena levando sua filhinha e um bebê para passear nas montanhas. Bastante simpático, foi o primeiro nessa minha jornada a dizer que conhecia Recife(!). Quer dizer, de ouvir falar. Luiz Gonzzzagha? Uau, como assim, você conhece? Não resisto e dou uma de pernambucano cabra da peste cantando "Asa Branca" prá ele (primeira estrofe, claro). Legal. Talvez um dia traga a família toda para uma trilha nas montanhas. Quizás, num dia mais bonito, com uma esposa bem-humorada sem tpm, pode ser uma boa.
Neste frio caminho das pedras também conhecemos duas garotas argentinas especiais: Adrianna e Johanna, uma colega médica! Papo não faltará neste trecho. E de fato, parece que as chicas porteñas são mais legais do que rezava a lenda. Adrianna esbanja bom humor e sorri fácil mesmo no meio do nevoeiro. Johanna é médica de família, uma área que dialoga muito bem com a psiquiatria. Há muito de psi nas queixas de atenção primária, em todo canto: hay que ouvir e conhecer o paciente. De cara, ela já se propõe a nos levar para um tour em Buenos Aires quando chegarmos. Diz que a vida lá pode ser bem estressante, e me pinta um retrato não muito distinto da rotina em São Paulo. Todo mundo ocupado/apressado. E desde a puta crise de 99, convivem com as "villas" (+-favelas), desemprego e instabilidade. Tampoco estão otimistas com a maneira que os Kirchner têm administrado a situação atual. De todo jeito, ainda sobra charme em San Telmo, Palermo, La Boca, Puerto Madero... Um charme europeizado, que alguns argentinos mais jovens admitem como uma imitação histórica de padrões ingleses, às custas de uma certa negação de sua latinidad. O que antes seria motivo de orgulho, na crise adquire ares de despropósito. Parece que não está sendo fácil para eles chegar a termos com uma identidade nacional problematicamente sulamericana sem floreios importados...

Pedra e mais pedra no caminho, até que subitamente os fortes ventos cessam. Que estranho. Olho prá cima, um pássaro solitário. Não há de ser um mau agouro. Virando a esquina, salta aos olhos o lago Torre. Uaahh. Não dá prá se empolgar muito. As nuvens agora estão à base da montanha, quase à nossa frente - nevoeiro, intensificando a sensação de frio e desolação. Definitivamente não inspira ao piquenique.
Converso um bocado com uma moça de Cingapura cujo nome eu não saberia escrever. Em seu país a modernidade convive com tradições de uma maneira peculiarmente asiática. Os cidadãos desfrutam dos confortos de uma economia de ponta, mas a liberdade é relativa. Tráfico de drogas é punido com pena de morte. O Brian me dá uma amostra de sua linhagem oriental: decide construir um abrigo contra o vento, pedra sobre pedra, na base do lago. Diligente, busca as maiores que pode carregar e as empilha com uma determinação de formiga. Encontra uma em forma de "L". Losers. heheh, a natureza tem senso de humor. Cumpre eternizar o momento com um troféu apropriado.
À noite vou ao albergue de Johanna, onde conheço Aurelien, de Bourdeaux. Sorridente e sem muita cerimônia, quebra facilmente o estereótipo do francês chato e arrogante. E como fala esse gaulês! Trabalha com marketing numa vinícola. Faz sentido. Reunidos con las chicas, vamos os quatro procurar um lugar decente para jantar. Algumas pizzas depois, a melhor parte do dia: aulinha de tango num barzinho próximo. Essa noite está bem concorrida. Considerando que Chaltén é uma ciudad deveras pequeña e bem longe da capital, jamais imaginei que teria essa experiência acá. Tanto mejor, há muitos habitantes locais e otros argentinos conosco, não se sente nenhum vício exploratório turístico mas sim amor à tradição. Surpreendentemente, no es dificile dar os primeiros passos. Pés rentes ao chão. O segredo está na atitude do torso, diz el maestro. Tiene que dialogar com o da parceira. Para além de toda a elegância europeia, aprendo que o tango tem sim um tanto de africano también. Não à toa sugere tanta sensualidade em meio à dramaticidade. Importar e misturar os floreios certos pode render lindos resultados. Baila perfeita para tempos difíceis. Si tiene que cair, mejor es deslizar com classe. Essa noche não precisa terminar tán temprano...

domingo, 14 de março de 2010

El Chaltén, 04.03.2010

Ao norte de Calafate e escondida no meio das montanhas andino-patagônicas argentinas, está El Chaltén. Com seus poucos milhares de habitantes, ainda uma ciudadezinha simpática com ares digamos, menos viciados de turismo, embora se perceba que está crescendo rapidamente por conta do mesmo. Aproveite-se enquanto pode, porque ao menos aqui o parque nacional ainda é gratuito. É só llegar.
No albergue conheço o Brian, americano de nascimento, mas coreano na cara e descendência direta. Assim como o Sumeet, ajuda-me a consolidar uma ideia mais plural dos EUA. Uma terra de imigrantes, talvez não miscigenada como o Brasil, mas não menos diversificada. Com seu trejeito maneiro de californiano aos 23 anos, Brian me instiga a fazer trilha logo de cara. E nos vamos. Hasta el "Chorillo del Salto", una cascada muy cerca. O caminho curto não foi dos mais empolgantes, mal cantamos 3 canções dos Beach Boys. E ao chegar, muy bien, um belo exemplo de cachoeira patagônica de águas claras (y frías) de degelo. Lembro-me novamente do velho professor, que dizia: "é nas quedas que o rio mostra sua força". Uma metáfora de uso corrente, sem dúvida. Decidimos subir por uma trilha até a parte superior da cascata. Nada mal, uma boa vista dos campos logo abaixo. Sentamos e conversamos um bocado sobre os "fatos da vida". Ele tem uma namorada meio vietnamita-alemã que está morando em Hong Kong (mundo vasto mundo). A primeira garota, estão juntos há 3 anos. Seria ela "the one"? Tento transmitir-lhe algo do alto dos meus 30 anos de encontros e desencontros. Não que se possa responder à (fa)tal pergunta de alguém, claro. Minha primeira camada se revela um tanto cética, lembro de meu irmão Othon ecoando Vinícius: "de cada amor herdarás só o cinismo". Divagando um pouco mais, lembro-me do que dizia a Annika, cantora sueca do Hello Saferide. "Na vida, todo mundo que conhecemos nos lembra alguma música". Se ela te inspira "God Only Knows", então não precisa mais procurar. Ele concorda que a canção dos Beach Boys não é prá qualquer um. Pfff, meu filho - romantismos idealísticos à parte - faça como quiser, mas faça sua escolha de vida: sua "walk of life". Também conversamos sobre livros. Aparentemente ele é fã do Kerouac e do Salinger, em especial do "Apanhador No Campo de Centeio". Comendo uma barra de cereal, relembro como também me fascinou há uns 8 anos a narrativa franca do Holden Caufield, que fala ao âmago de qualquer jovem às voltas com seu "coming-of-age", passagem à adultez. Fase de conflitos marcantes de identidade, propícia a crises e eclosão de transtornos mentais. Bem, mas não é assim que trata o Salinger. Ele prefere as metáforas. Em meio a casuais e não menos acachapantes constatações da hipocrisia reinante e do vazio à espreita numa perspectiva de vida incerta, o marginalizado (mas não alienado) Holden sonhava na vida segurar as crianças que brincam na plantação à beira do despenhadeiro. Taí um livro que mexe com as pessoas (inclui-se o psicótico assassino de Lennon), de qualquer lugar.

Para a volta, ainda um tanto carentes de adrenalina, decidimos descer pela encosta oposta, sem qualquer trilha à vista. Isto é, decidimos nos embrenhar no mato até fazer nosso próprio caminho de volta para Chaltén. Nada de zorros (raposas patagônicas), huemuls (tipo de cervo) ou pumas no caminho; apenas uma amostra de natureza em estado natural, com o perdão do pleonasmo. Sem a mão tendenciosa do homem, uma coisa fica clara: nada mais natural que a morte. Cadáveres de troncos petrificados por todo lado servem de abrigo e substrato para tantos outros seres, lembrando que o ciclo da vida é a regra. Só pode haver renovação onde há perecimento. Mais abaixo, mato mais alto e mais árvores, trazendo uma pontada de incerteza de nossa localização. E se não houver passagem? Teremos que encarar uma dura subida de volta até o topo do morro. Tudo bem, enquanto houver luz, haverá tempo. Deixo a mente divagar. Assim foram talhados nossos genes: para sobreviver, competir e reproduzir. Milhares de anos de evolução natural em ambientes inóspitos para chegar aqui. Se Darwin estava certo, a luta pela vida proclama em nós as vitórias de nossos antepassados. Existe uma memória filogenética de cavernícola matador hibernando em cada urbanoide sedentário, apenas aguardando o estímulo devido para a luta (ou fuga, claro). Esse pode ser um pensamento bem revigorante para momentos selvagens. O medo é natural, o pânico que paralisa é um capricho da civilização neurotizante. Vinde a mim, ó pumas.
Os pumas não aparecem, mas sim a trilha para Chaltén, em poucos minutos. Um gostinho de vitória, não fomos selecionados para reciclagem, ainda. Já podemos pensar no jantar. A civilização entretanto, vai ter de esperar. Não há internet nos albergues. Posso dormir mais cedo sem as divagações e comunicações virtuais de praxe. Quanto menos comodidade, mais liberdade?

quinta-feira, 11 de março de 2010

El Calafate, 02-03.03.2010

Bem, depois de toda a aventura chilena, era mister desacelerar. Calafate parecia bastante propícia para a empreitada. Algumas noites em um albergue melhorzinho para relaxar e atualizar as *coisas* (isso aqui, por supuesto). Andando pela cidade, barzinhos e lojinhas de souvenires, superfaturados. E no meio de tudo, um cassino. Uma versão turbinada de Gravatá? Fica a impressão de que não tenho de fato muito a perder me enfurnando no albergue por algum tempo. O que a ciudad tem de imperdível é talvez sua razão de existir: el Glaciar *Perito Moreno*. O maior picolé fora das calotas polares. Mañana, veremos. Hoy me satisfaço com um helado com merengue, dulce de leche (como gostam disso os argentinos) e chocolate com avellanas. nham nham. Curto isso tudo torcendo pela Alemanha contra a Argentina, amistoso em Munique, ao vivo. Gol de Iguaín. O cara ao meu lado dá um pulo. É só um amistoso, mas teve jeito de copa, os dois times aguerridos e a defesa argentina se segurando com todas as forzas até o fim. Apesar de todo o habitual endeusamento de Maradona, os argentinos não estão particularmente confiantes no time. Depois desse juego, "el grande teste", o clima pode cambiar bastante acá...
Andando pelo mercado, encontro com Johanna, a professora ítalo-americana-alemã que conheci a caminho de Puerto Natales. Este deve ser nosso sexto encontro casual pela América do Sul. Seria a Patagônia também uma vila de pescadores? Parece inevitável se bater com as mesmas figuras nesta parte do mundo, já que muitos roteiros coincidem (ou se sobe, ou se desce). Ela está sempre sorridente e debate bastante sobre os custos dos passeios. E me informa oportunamente que minha cara está pior a cada vez. Oops. Hora de fazer a barba, e dormir mais.
No dia seguinte, de cara limpa, vamos ao Perito Moreno! O nome da geleira é uma homenagem ao cientista e explorador argentino Francisco Moreno, que ao que parece não chegou a conhecê-la. Ainda no ônibus, paramos em outro albergue e... surpresa! encontro Priscila, velha (digo, das antigas) amiga sempre viajante. Depois de Brasília e Copacabana, agora nos encontramos em Calafate... Parece que a América também é uma vila de pescadores. Claro, como sempre soubemos onde estávamos, neste caso não posso falar em coincidências circunstanciais, mas apenas... existenciais? Ela também decidiu dar um tempo na rotina, no seu caso os estudos para o Instituto Rio Branco, e conhecer este pedaço do mundo. Pena que seu joelho estava doído, então terá de abreviar a viagem. Mas que ótimo que nos encontramos hoje, sem combinar, no seu último dia, depois de alguns desencontros de emails e roteiros. Assim o Perito Moreno fica com uma cara familiar de passeio de domingo. Trocando o Paço Alfândega pelo Parque Nacional Los Glaciares.
Como quase sempre na Argentina, temos que pagar uma entrada meio salgada para desfrutar de la naturaleza: 75 pesos. Feitas as contas, que bom que tenho minha amiga do lado para um empréstimo providencial na hora do almuerzo. A geleira, vista já de longe, torna-se supercalifragilisticamente imponente à medida que nos aproximamos. A analogia preferida deles é com a capital: "una area total major que Buenos Aires". Pegamos o barco no lado norte e testemunhamos tão perto quanto possível aquela metrópole desértica de branco ofuscante. E azul, cor dominante das partes mais internas, mais antigas, creio. Algumas fotos depois, torcemos pelo momento embasbacante maior: o desquebramento do gelo. O silêncio do Glaciar é literalmente quebrado a todo instante por ruídos profundos que parecem saídos de alguma ficção científica "Viagem ao centro de Marte" (ou, bem, "Era do Gelo 4"). Como não poderia deixar de ser, o desquebramento (palavra bonita que não se usa em todo canto né) teima em não acontecer enquanto estamos pertinho, torcendo "vamos perito cariño, muestre tu poder... bora Moreno branco, faz tua parte... despedaça danado, quebra logo prá mim p****"!!! Droga, onde deixei minha granada de mão quando mais preciso dela...Finalmente, quando já estávamos passeando pelas plataformas e comendo maçãs e pêssegos (como são bons estes duraznos acá), Priscila usa seu sexto sentido feminino e me avisa para pegar minha câmera. Ela viu um pedacito de hielo caindo, aperto o rec, ela acertou na mosca: um gelinho precede o gelão que faz no lago um barulhão. Uma rima pobre não passa certamente a dimensão do nosso estupefatamento, mas você pode imaginar. Algumas míseras toneladas de gelo se chocam contra o lago plácido e fazem um barulho profundo de, bem, avalanche na água. Difícil descrever, só posso tentar uma aproximação onomatopaica: prshhhhhprrrrooffffffcataploffffffrrrrshvmreimwntrpdxs!!!! Talvez seja melhor postar o vídeo no youtube né. Así será, luego.
Como não poderia deixar de ser, de volta à cidade terminamos nossa tarde num librobar-café pitoresco. As bebidas tinham nomes de escribidores argentinos, claro. Minha escolha natural seria um Borges ou Cortázar, mas ficamos com o queridinho da Priscila, Sabato. Acompanhado de algum coiso bom de banana com (adivinha?) dulce de leche. Muy bien, mas não superou o Café Colombo, do Rio. Teremos que esquentar essa disputa em outros cafés pelo mundo... Paris Pris? como se diz em castellano: jejejej. Con amigos, es siempre mejor.

sábado, 6 de março de 2010

Torres Del Paine, 01.03.2010

Superação, teu nome é Torres Del Paine. Outra historinha dos tempos de exército que me recorre nessas horas: quando você pensa que está acabado, é porque chegou aos 50% (obrigado cap Florindo). Então, à última missão. Saímos de madrugada para atacar a montanha. No escuro, encontro Marjolein mais à frente, verdadeiramente transtornada. Ela diz que não aguenta mais o David e seu egoísmo. Já tinha visto ele regulando os lanches, mas desta vez brigaram feio mesmo. Na versão aparente: ele reclamou de algo que não estava exatamente como nos planos dele para o café-da-manhã nas montanhas, e decidiu se mandar na frente. Ainda bem que já se foi a última noite, então a separação deles não terá maiores consequências. Tento consolá-la, mas faltam-me as palavras. He can't ruin your day. Ela segue em frente, e eu vou logo atrás no que se revelou depois um caminho "paralelo". Ao invés da suportável trilha natural em ziguezague, encaramos uma infindável pedreira vertical, e o atraso é inevitável. Já havia tomado caminhos equivocados 2 outras vezes no circuito, mas faltam-me metáforas para digerir este último infortúnio. Só me agoniava de pensar em perder o espetáculo natural. Mas peralá, a alvorada não está só lá à beira dos picos, mas em todo lugar.
El condor pasa. Pego minha câmera, ele parece fugir, mas só troca de rocha... E me mostra, tanta beleza ao redor. Quer dizer, pela silhueta não deve ter sido um condor, mas que outra ave domina a montanha desse jeito? (e ainda tem na música de Paul Simon). Vejo os outros viajantes já perfilados aos pés do cerro, mas já não me sinto o azarado atrasado. Prossigo a jornada e chego ainda em tempo de registrar o efeito mais que especial do sol sobre as montanhas. Aquele halo amarelo reluzente me lembra que alcançamos o ouro, afinal. O ouro dos tolos, todos que se permitem deslumbrar-se à toa com algo que simplesmente acontece. Lembro-me do filme "Man On Wire", daquele francês que se equilibrou entre as torres do World Trade Center em 1974. Adoro a parte em que os jornalistas americanos o perguntam "por quê"? Não há por quê. Abençoados sejamos todos. Fin del sendero.

Marjolein me oferece oat meal, que dispenso (bleh). Um pouco mais sorridente, David me diz que achava que eu não conseguiria. Eu achava que ele achava isso, mas não me lembro de ter cogitado intimamente desistir. Lembro-me sim de ter imaginado desmaiar no caminho. Ufa, passou.
O caminho final, até a hostería Las Torres, se me serve de epílogo, foi bom para curtir a energia boa do sol ameno da Patagônia com aquela sensação de missão cumprida. Gracias, gracias. Que meu joelho ainda aguente esta descida, só mais essa. Prometo vida mansa em Calafate.
A ladeira final serviu para confraternizar mais com a Marjolein também. Ela realmente me deixa uma boa impressão dos holandeses. E me pergunta por que só vemos holandesas viajando, e não holandeses? Vai saber, os caras não trocam Amsterdã por nada. Concordamos com a predominância de israelenses e franceses em Torres Del Paine, e eu me pergunto por que mal encontrei brasileiros, homens ou mulheres. Por que ainda não abraçamos de vez essa cultura mochileira internacional? Acho que meus conterrâneos adorariam estar aqui, mas talvez não consiga imaginar a maior parte com os 15kg nas costas. Algo para se refletir. Gilberto Freire que responda. Ah, existe turismo tradicional em TDP também. Isto é, tanto quanto possível. Mais caro, claro.
Marjolein, Julie e David tem entretanto um tanto em comum. Espelham circunstâncias da nova Europa pós-crise. Todos vivem momentos de redefinição profissional, aproveitando uma pausa prolongada (ou desemprego) para repensar a vida em jornadas mais agradáveis longe do rigoroso inverno. Parece-me uma maneira curiosa de encarar uma crise. Se não há mais nada a fazer, vamos dançar um tango argentino. Ela é a mais velha de 3, e se considera tipicamente primogênita, a (mandona) responsável/organizada. Ela me diz que a sina do irmão do meio é ser sonhador. Nada a declarar. A não ser: será que as Rochosas Canadenses podem superar isso?

sexta-feira, 5 de março de 2010

Torres Del Paine, 28.02.2010

Felizmente sinto-me relativamente disposto pela refeição substancial da noite anterior. Seguimos viagem pela trilha no dia que promete ser o mais longo dentre os 4. Aqui e acolá, o parque continua a nos brindar com paisagens sensacionais das mais variadas. É impressionante como tanto cartão-postal distinto possa se reunir num só lugar. Chego a sentir-me na minha própria saga da Terra-Média, tal é a multiplicidade de ambientes que se sucedem e nos surpreendem a cada (exaustiva) colina que cruzamos. Quem não tem Nova Zelândia, se vira com Chile numa boa.

Aventura, teu nome é Torres Del Paine. A todo o tempo dois filmes a que recentemente assisti me recorrem na mente. O primeiro, mais conhecido, é pérola para 10 entre 10 trekkers: "Into The Wild". Parafraseando o McCandless: "Sei quão importante na vida é não necessariamente ser forte, mas sentir-se forte; medir-se ao menos uma vez (na natureza selvagem)". O outro me ocorre em momentos menos líricos: "O Homem Urso", de W.Herzog. Encarando com germânica sobriedade a natureza das coisas, ele filosofa: "Acredito que o caráter comum do universo não é harmonia, mas caos, hostilidade e assassinato". Nada mais humano, entretanto, do que tentar dar sentido pessoal e transcendental a cada ato natural. Escolhemos não por acaso realizar a trilha a favor do vento. Houve diversos momentos em que ele se intensificava repentinamente. Em alguns, eu estava tão exaurido que abria os braços e o parque parecia querer soprar-me até o final. Em outros, eu estava margeando abismos, e a sensação de ser arrastado me fazia pensar: "este não é lugar para gente", esquecia a foto e acelerava o passo.

Se a natureza nos é indiferente, mãe ou hostil, depende da fé de cada um. Em Torres del Paine, como não poderia deixar de ser, quando você pensa que o pior já passou, pense de novo. Perdi a conta de quantas pontes rústicas cambaleantes de madeira tive de cruzar. Dessas com corrimão único, ou algumas tábuas a menos aqui e ali. Depois da terceira ou quarta, você já abstrai dos pesadelos de criança e começa a estimar sua rudimentar arquitetura como sendo "prova do engenho humano a serviço da integração paisagística". O problema passa a ser então quando elas faltam onde deveriam existir...
A certa altura, tivemos de cruzar um rio pedregoso na marra. Em alguns trechos, saltitando de pedra a pedra, tudo bem. No entanto, em um momento, não havia tronco atravessado que resolvesse: teríamos que encarar a água gelada. Neste trecho, todos andarilhos paravam pelo menos meia hora para analisar "friamente" a situação. Se andar com pés e calças molhadas ao vento frio já seria um problema para o moral combalido, imagina então perder um pé do tênis (aconteceu com uma garota, a agora lendária Cinderella de Torres) ou enfim, ser arrastado correnteza abaixo até uma pedra mais condescendente. Game over na certa. Lembro dos dias de exército: "se está no inferno, abraça o capeta". Depois de matutar alguns minutos a fio, o David me joga seus chinelos, amarro meus tênis na mochila e decido encarar sem maior ponderação os perigos do rio. De cara, as pedras não se firmam, e dou com o pé-de-chinelo na água gelada. gaaaahhhhhhh. Magoa como navalha na carne. A dor se transforma em pressa e a ansiedade me deixa bem pouco habilidoso. fjondiarjtemvfmspiggggghhhhhhrrrrr... na outra margem, molhado acima dos joelhos, curto momentos de agonia sobre plantas espinhosas. Ufa, pela minha experiência em trilhas brasileiras, subestimei esse rio. Água fria dói, muito. Dura lição, a hipotermia. Mas enfim, estou vivo, e o dia não acabou...

Depois de muita pedra e pradarias, o deslumbrante Valle Ascencio. Poizé, mais montanhas, então haja subida. Afinal, precisamos completar os 20km que nos levam ao acampamento Las Torres, à beira dos picos. Armada a barraca, às 20:00, dá prá preparar nosso delicioso jantar de massa pré-pronta. Peço perdão aos queridos pés, coitados, tão inocentes. Meu celular com gps sem sinal ainda serve para algo: acerto o alarme para as 6:00, e me responsabilizo por acordar os colegas. Temos que acordar cedo e encarar no escuro mais uma hora íngreme para testemunhar o famigerado "Amanhecer do Cerro Torres".

quarta-feira, 3 de março de 2010

Torres Del Paine, 27.02.2010

Acordo para um dia que promete ser longo pelas caminhadas de mochilão nas costas. Como bom cavalheiro, terei a barraca de casal como companheira inseparável de trilha, totalizando os 15kg de bagagem. Ok, a Julie é esportiva (instrutora de ski), mas é tão pequenina. Não posso negar entretanto que ela me deixou chateado por jantar o sopão mixuruca ao invés da massa que tínhamos combinado de fazer. Ok, estoicismo, lembre-se: tudo no seu lugar nesse cosmos. Talvez meu pai dissesse que estaria sendo bobo e não estoico ao engolir sapo, digo, a sopa, sem reclamar. Enfim, meu pai não está aqui, então vamos cuidar de desarmar a barraca. Levei mais tempo do que previa empacotando os trecos (maldito saco de dormir), ainda pegando o jeito, enfim. Para não atrasar meus colegas expedicionários, tive de me contentar com uma maçã no café-da-manhã. A esta altura, a terra já tinha tremido mais ao norte do Chile, e o tsunami deveria estar varrendo a costa. Nesta perspectiva, definitivamente eu continuava sendo um cara de sorte, afinal, é mais um dia bonito em Torres Del Paine...
Gold road's sure a long road. A estrada para o ouro é definitivamente longa. As tiras do mochilão começam a pesar e cada dorzinha no ombro vai se avolumando em tortura chilena. Logo me sinto fraco e meio enjoado. Teria sido o balanço da terra? Pfff, não me faltavam motivos. Depois de umas 4 horas de caminhada, chegamos ao "Acampamento Italiano". Aí devemos deixar a bagagem e seguir a perna média do W pelo Valle del Francés. Aliás, como tem francês por aqui. Pensando no restante do caminho a seguir até o acampamento Los Cuernos, onde deveremos chegar exaustos às 20:00 para montar a barraca, decido me poupar. A meio caminho, a perna média do W fica prá outra vez. Torres del Paine tem um jeito peculiar de te oferecer os maiores deslumbramentos da vida. O preço a pagar é a exaustão física até o reconhecimento dos seus limites. Melhor cuidar de me alimentar direito esta noche se ainda quiser chegar inteiro ao Cerro Torres.
Após mais luta contra o vento e muita pedra pelo caminho, chego a Los Cuernos, antes dos colegas expedicionários. aaaaaahhhh. São 20:00, mas não dá prá descansar ainda. Preciso montar a barraca. Terreno duro, difícil de enfiar as estacas até o fim. Prá piorar, o vento se faz mais presente do que nunca; travesso, zomba do meu cansaço. Termino a montagem e vou ajudar David na dele. Estava tendo dificuldade com o piso pedregoso. Na verdade, posso dizer que ele esqueceu a fleuma inglesa e ficou puto mesmo. Foi reclamar com a administração do camping por não conseguir firmar as estacas. Vamos lá, a gente consegue. E conseguimos. Julie e Marjolein chegam logo depois. A holandesa me abraça, incrédula do próprio esforço. Pouco depois, descobrimos do terromoto, e que por conta dele não há comunicação com Santiago. Deve ter sido grave. Só posso torcer para que o povo não esteja arrancando os cabelos em casa.
Neste acampamento, uma refeição decente no refúgio é o nosso prêmio auto-consignado. Por 10.000 pesos (~R$30): sopa y pan, carne con legumes, sobremesa bate-entope e cerveza por fora. 2.500 pesos por cada "Austral", talvez a pior cerva que já tomei (neste caso, a melhor pior cerveja da minha vida). Não há concorrência, então não há barganha. Com a barriga cheia, só me resta capotar no saco de dormir. São 23:30, sigo Julie até a barraca em plena escuridão. Se não me engano, foi aqui que armei, mas onde está, não pode ser... gaaaahhhhhh!!! Nosso pior pesadelo: barraca virada. E a ventania furiosa não dá trégua, parece querer arrancar as 2 estacas que ainda sustentam. Julie atônita, só consegue reclamar. &$%¨$#! "O que foi que você fez? Como foi armar aqui?" Isso é realmente encorajador. Sem tempo para pânico ou discussões, imploro por compreensão enquanto tento analisar o problema com a pouca luz de sua lanterna de cabeça. As estacas ainda estão no chão, então o que aconteceu? O vento tanto insistiu que as frestas entre o chão e as estacas foram o suficiente para deixar tudo voar. Algumas pedras devem resolver a "vedação". Julie perde a pouca paciência e se vai. Depois de minutos que parecem horas de muita luta à pouca luz, consigo habitar a cabaninha. Com a adrenalina ainda em alta, a ventania incessante mantém o clima de Bruxa de Blair. Será uma longa noite. Julie retorna com David, e depois de mais alguns ajustes pedregosos, decide que pode dormir na barraca. Pede-me desculpas por ter surtado. Ça va, je comprends, ce n'étàit pas facile. Lembro-me que o último filme que vi em casa foi o Mágico de Oz. O vento nem sempre é seu inimigo. E curiosamente, dentre os caprichos desse parque maluco e seus microclimas: essa noite não faz frio. Após um dia duro na terra, enfim... The wicked witch is dead.

terça-feira, 2 de março de 2010

Torres Del Paine, 26.02.2010

Agora é prá valer. Circuito "W" de Torres Del Paine. Valha-me Santa Gumercinda dos Viajantes Intrépidos. Estamos falando em uma caminhada de mais de 60km em 4 dias. Melhor não pensar nas subidas, aliás as descidas também podem ser igualmente sofríveis se seu joelho não ajudar. Se aquelas semanas de cooper e bicicleta em Boa Viagem não me prepararam o bastante, fico no meio do caminho. De sede não dá prá morrer, porque rios com água potável de degelo cortam o parque inteiro - mas não dá prá considerar a possibilidade de fracasso. Ser recolhido aos cacos por algum cavalo e carregado até a van não é uma opção. Melhor coisa é deixar a cabeça e os pés no presente, no máximo divagar até a próxima curva. Que será a véspera de outra colina, depois outra, e mais outra... Opa, o céu está aberto, tempo bom! Posso (preciso!) dar sorte e não encarar chuva nos 4 dias, o que é bastante improvável para o clima instável da patagônia chilena... O Ian não parava de se gabar da sorte que teve com seus 4 dias seguidos de sol, mas claro, pode acontecer de novo, tem o aquecimento global e tal e coisa. Vai dar tudo certo. Já tenho minhas luvas e gorro, além das frutas secas (cranberries e figos, nham nham), sopões e barras de chocolate com cereais - do que mais precisa um homem prá viver?
Óculos escuros. Mais para proteger do vento que da luz. As rajadas são legendárias por aqui. Armar a barraca no acampamento Pehoe acaba sendo um desafio maior que a encomenda. Pé na trilha, sem bagagem nas costas neste primeiro dia. Como planejamos cumprir o W em 4 dias (ao invés dos habituais 5), só temos esta tarde para a ida e volta ao Glaciar Grey. De cara, 22km. Meus pés, perdão, mas agora é missão. A paisagem inicial não é das mais empolgantes: mato e colinas indistintas que poderiam figurar nas vizinhanças de Garanhuns. Após algumas subidas e muitas pedras no caminho, uuuuuuuaaaaaaaahhhhhhhhh!!! A primeira visão da lagoa verde com pedaços de gelo azul e o Glaciar Grey ao fundo é estonteante. Tudo bem, faz só 3 dias que eu conheci o negócio da água sólida natural, mas posso ver que meus colegas de trekking estão igualmente atabalhoados. A visão entorpece por alguns minutos, tiramos as primeiras fotos com sorrisos bobos e vamos em frente. À medida em que nos aproximamos da geleira, a visão daquele shangri-lá de algodão serve de estímulo. Por mais perto que chegue, ainda não parece de verdade. Entenda-se, já sou de uma geração acostumada a truques de computação gráfica, então fica difícil acreditar na coisa. Na minha cabeça, metáforas pop variadas, desde a fortaleza do Super-Homem até o caminho de Valinor. Ok, fiquei empolgado, mas veja bem... ali, sobre o lago se estende um tapete de gelo para além do qual não se discerne o horizonte - tudo é um ofuscor de branco! Putz, me belisca.Simon é filho de uma inglesa com um colombiano. Ele me acompanha na instigação de subir até o mirante, onde tiramos as últimas fotos do Glaciar e nos despedimos, lembrando que já passava das 17:00 e teríamos os 11km da volta pela frente. Não há tempo para pensar em cansaço. Conversamos um bocado no caminho, compartilhando amendoins, cranberries desidratados e chocolates. Claro, pensando que o resto da equipe já terá chegado e preparado o *super jantar especial* (massa com molho pronto). Simpatizei com o garoto cabeça. Aos 24 anos ele acabou seu curso de animação e está curtindo 3 meses pela América do Sul antes de se assentar em algum lugar prá valer. Falo para ele que Floripa tem um pólo de animação gráfica, e é uma das melhores cidades do Brasil para viver. Ele considera voltar a viver em Bristol, na Inglaterra, terra de sua mãe, apesar de adorar sua Bogotá natal. Conta que a narcoguerrilha sempre foi o único grande problema de seu país, e fala dos terrores por que passou com sua família nos anos 90. Tem uma opinião favorável da forte presença americana na Colômbia, e muito pessimista quanto à vizinha Venezuela. Chega a antever uma guerra civil por lá, o que não é um exagero quando se pensa na milícia que Chávez formou e na ditadura autocrática que se desenha. Digo para ele ler 1984 de Orwell, certamente um livro proibido em Caracas, pois os sórdidos métodos chavistas tem um tanto da filosofia do Grande Irmão: "guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força".

De Ushuaia a Puerto Natales, 24-25.02.2010

Partindo do fim do mundo, só me resta subir na vida. O próximo destino prometia ser não menos frio, mas ainda mais maravilhoso: Puerto Natales e Parque Nacional Torres Del Paine. A viagem porém poderia ser mais curta: 17 horas entre ônibus e paradas obrigatórias deixam qualquer um com bus-lag. A paisagem patagônica e a travessia do estreito de Magalhães (golfinhos me pulem!) valem a pena, mas os trâmites alfandegários entre a Argentina e o Chile esgotam a paciência dos turistas mais voluntariosos. A impressão de que os vizinhos rivais (e colegas de Mercosul?) em geral não se dão muito bem vai adquirindo ares mais concretos. Melhor esquecer que ainda devo passar por isso outras vezes...
Enfim, falando das coisas boas, a paisagem no caminho por si só merece um livro. Não que as planícies patagônicas sejam particularmente maravilhosas, mas me pareceram convidativas à reflexão (talvez tenha passado tempo demais na janela). Em meio à poeira das estradas de rípio (o cascalho deles), a visão se perde no horizonte plano como um oceano de desolação. Quanto mais se afasta do Equador, mais lenta a rotação da Terra, de fato. Ao sair do Paralelo 8 para o 55, devo ter ficado com terra-lag, já que aqui gira particularmente devagar. Metáforas à parte, as pradarias sugerem uma paisagem que pouco mudou nas últimas décadas. As ovelhinhas parecem viver em câmera lenta. As cercas atestam a ocupação humana, mas pode-se levar horas até ultrapassar um carro ou testemunhar viv'alma. Além do vento (invisível, mas onipresente), apenas a corrida dos guanacos movimenta o filme. Assim foi melhor mesmo contar as ovelhinhas e dormir um bocado...

Os dias aqui estão bem longos, mas também acabam, e só depois chego a Puerto Natales. Às 23:30 poderia ser bem perigoso andar por ruas desertas no Brasil, mas bem, vamos tentar deixar a paranoia urbana no passado por enquanto. Chegando ao albergue Kaweskar do Omar, o ambiente meio rústico me faz logo sentir em casa. Agora é reconhecer o terreno para me preparar para o trekking da minha vida: o famigerado *W* em Torres del Paine. A simpática Natales é praticamente uma base de exploradores do mais sensacional parque nacional chileno. Assim, não foi difícil juntar-me à Julie (francesa), David (inglês) e Marjolein (holandesa) para formar nossas nações unidas do camping. Desta forma tudo fica mais barato e seguro (e divertido!) para todos. Expedição formada, ansiedade crescente. Essa não vai ser fácil, mas até aqui, eu tenho a benção da semi-ignorância mesclada à empolgação do novo desafio...

Ushuaia, Tierra del Fuego, 23.02.2010

Para o último dia e chuvoso dia em Ushuaia, um trekking mais instigante: laguna Esmeralda! Com esse nome, tinha que valer a pena até debaixo d'água. A questão é quanta lama teríamos que enfrentar. E a resposta óbvia: um bocado. Bem, toda a filosofia trekker não teria sentido se não houvesse uma certa dose de desconforto envolvida. Se o negócio parece acessível demais, então não significa aventura. Sendo barato, remoto, difícil e com poucos japoneses coloridos (que aliás costumam ser gente boa), aí já se pode conversar...
Claro, não posso me considerar trekker nem propriamente mochileiro por vocação; estou mais para curioso compulsivo ou amador da vida, se preferir. Boa parte da minha disposição advém da inocência de encarar o dia na perspectiva mais "carpe diem" possível. Essa inspiração estoica basal provavelmente remonta aos tempos de Sociedade dos Poetas Mortos (obrigado Marcelo, Rodrigo, primos e irmãos de fogo). Prá quem viveu a adolescência nos 90, o filme deve significar algo de bom, apesar do Robin Williams.
Então, de jeans e mesmo sem luvas ou gorro: sí, se puede. Claro, não estou recomendando imprudência, principalmente para quem pretende desafios mais longos na natureza selvagem e fria. A natureza não é naturalmente amigável - pelo contrário. A recompensa para o despreparo dos intrépidos tende a ser sovas didáticas dos galhos e castigo das intempéries imprevistas. De todo jeito, encarei este primeiro desafio como um cursinho pré-Torres Del Paine. Bem acompanhado pelos colegas de albergue, Sumeet e Yvonne, além de um casal de israelenses (como viajam os judeus!), seguimos pela trilha quando a chuva deu uma trégua. Dentro das 4 horas desviando das poças, a natureza sempre encontra um jeito de te derrubar na lama. Com passo cautelosos, todos tentamos guiar e escorregamos na proporção da nossa confiança recém-adquirida. Bem, nada que uma boa lavanderia não possa resolver. E, ufa, a chegada à laguna à beira dos picos nevados após subir ao seu platô é perfeita para surpreender de perto e embasbacar à primeira vista.Na volta, a sensação de que viajantes que se enlameiam unidos adquirem afinidade. Mais uma vez, é na adversidade que mais nos unimos. Com alguma intimidade, conversei com o casal judeu sobre a situação mundialmente preocupante do país e as perspectivas de quem lá vive. A impressão geral que tive é de que eles próprios não vislumbram paz, embora também não possam dizer com certeza qual a proporção de palestinos que efetivamente aceitariam ter o estado de Israel como vizinhos. Houve excesso de força de ambos os lados e hoje há muita pressão para intolerância por conta da mágoa acumulada, e assim o judeu israelense (muito distinto dos judeus de fora) basicamente se acostuma desde cedo a conviver com o militarismo perene de um estado à beira de uma guerra santa (?). Não admira que tantos aspirem à liberdade de viajar após os anos de serviço militar obrigatório (3 para homens / 2 para mulheres), e fazem valer seu "ano sabático" peregrinando pelo mundo.
Sumeet, americano de ascendência hindu, se mostrou um colega (futuro pediatra) bastante curioso, com suas poses de yoga para fotos e atitude econômica sempre amistosa. Um cara que valeu a pena facebookar, mesmo que eu não passe pela Carolina do Norte. Depois jantei com a Yvonne no "Tante Sara" e também nos divertimos bastante debatendo filosofias de vida em inglês e espanhol (und ein bisschen deutsch?) na língua universal do alberguês. Como alemã independente desde os 19 anos, tendo trabalhado voluntariamente no Equador (aos 25 anos) e viajando sozinha pela América do Sul há 6 meses (o noivo a espera em Colônia), pareceu-me um bom exemplo das distinções culturais Brasil-Europa...

Ushuaia, Tierra del Fuego, 21-22.02.2010

Depois de reaver enfim "el equipaje", coloquei o casaco e fui me aventurar. Prá começar, matar a curiosidade da neve subindo a montanha hasta el "Glaciar Martial", com Ian, Corinne (ingleses) e Sarah (americana). Para o trekker europeu experiente, nada de mais, mas para um pernambucano de Petrolina que sempre morou em Boa Viagem, um primeiro contato interessante para mungangas e fotos casualmente abestalhado. Verdade que a tal neve estava mais para gelo, meio dura e lamacenta, e quase levei um tombo. De fato, foi melhor mesmo deixar os bonequinhos de nariz de cenoura para outra ocasião...

Ao sairmos pela cidade, o Ian me provou que os ingleses podem ser mais fanáticos do que nós em questões futebolísticas. Onde entrasse pedia ao garçom para sintonizar no jogo da "premier league", mesmo que não fosse do seu Arsenal. Tive alguma dificuldade em explicar a ele que o Robinho da seleção joga mais que aquele reserva do City. Ao menos, Gilberto Silva e Daniel Alves ele respeitava. À noite, fomos ao tal Irish Pub de Ushuaia beber da boa cerveja Beagle vermelha. Legal que os bebentes na Argentina recebem pipoca ou amendoim por conta da casa. Uma boa ideia, já que a gente acaba bebendo mais e mais... Resultado: ressaca no dia seguinte. Nada que um banho quente não possa disfarçar. Na noite seguinte voltaríamos para lá. Para ouvir "it's the end of the world as we know it", do R.E.M., como não poderia deixar de ser.

Um passeio inevitável em Ushuaia é sem dúvida navegar pelo canal de Beagle, que bem podia chamar-se "Brrrrreagle" pelos ventos antárticos. Difícil supor como os rústicos fueguinos se viravam por esta terra agreste logo que chegaram, alguns séculos antes dos espanhóis e de Darwin. Quando pequeno e já fascinado pelo mundo, achava Tierra del Fuego um nome estranho para um lugar tão frio, e ficava matutando sobre que acontecia lá no encontro dos oceanos. Não, de fato não encontrei os monstros de fúria de titãs. Todavia, pude atestar a pertinência do nome. Não tinha homo sapiens que sobrevivesse aqui sem uma fogueira decente.
A viagem de 6 horas valeu a pena, mais pelos pinguins magallanicos e leões marinhos do que pelo "faro del fin del mundo" (sobre o qual Julio Verne escreveu um livro, sendo na época um farol bem mais rústico). Havia um pinguim de crista amarela sobressaindo da multidão: um imperador! Não sei se ele chegou prá botar ordem e progresso na Pinguiñera, mais provável é que divagou um pouco longe demais de seus irmãos na Antártica.
Na volta, com o mar um tanto turbulento, possível imaginar as dificuldades que o capitán Magallanes deve ter encontrado para dar a volta ao mundo em sua caravelinha Trinidad. Mal supunha ele o tamanho do Pacífico do outro lado e seu destino fatal nas Filipinas... Claro, prá não perder o mote, lembrei que ainda estava meio de ressaca e fiquei nauseado. Fui à popa me refestelar (essa palavra eu empresto do Deyvis) num banco vazio. Do outro lado, um simpático casal de brasileiros de férias acampando pela Sudamérica me ajudou a trocar os pensamentos marejados por sonhos de Torres Del Paine. Poizé, depois de colonizar Brasiloche, o fim do mundo já está amarelando. A moça, paulista, o rapaz, paranaense, planejando morar em Maceió. Apesar de achar Pajuçara uma fuga coerente ao caos de Sampa ou à afamada chatice dos curitibanos, não pude deixar de pensar na história da grama do vizinho...

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

De Buenos Aires a Ushuaia, 19-20.02.2010

Alea jacta est. Finalmente tomei o avião rumo ao fim-do-mundo como o conhecemos. Turisticamente, quer dizer. Ushuaia, Tierra del Fuego, Cabo Horn... Lá onde o vento faz a curva, ou o diabo perdeu as botas, onde Magalhães disse "y ahora?", ou Darwin pegou uma gripe... um lugar que habita minha imaginação desde pequeno. Além dali, só a Antártida. Parecia um lugar razoável para dar sentido excepcional a esta jornada. Claro, histórica ou pretensiosamente, qualquer lugar poderia servir, desde que dissesse algo ao roteirista. *Fin del mundo* tem lá seu impacto. Geograficamente entretanto, existe uma certa polêmica, já que a chilena Puerto Williams é na verdade mais austral do que Ushuaia. Sín embargo todavia contudo aliás: como pode haver um fim de mundo se ele é redondo? Onde seria o começo? Heheheh, marketing turístico à parte, na dúvida entre as cidades, fico com o esquizo Schreiber: "o fim do mundo é uma contradição em termos". De todo modo, como não sonho descer para a Antártida (US$3.300/pessoa), teria em Ushuaia pouca dúvida sobre para onde seguir na vida. Cada um que procure seu norte, antes que se anuncie a morte... boa noite, e boa sorte.

Ainda na escala em Buenos Aires conheci um casal de japoneses de férias, Key e Azusa. Simpáticos, da maneira restrita que se poderia esperar. Almoçamos juntos no aeroporto; me disseram que estavam de partida para El Calafate depois de terem passado pela Espanha e antes de irem para a Itália. Poizé, roteiro peculiar desse jeito. Já pude me sentir privilegiado de ter mais do que "10 dias de férias" para viajar...
A primeira impressão da capital porteña não poderia ser grande coisa, considerando o trânsito e o rio da Prata por cenário (foto). Até o mais bairrista dos argentinos parece concordar que o este estuário e suas águas barrentas é indistintamente feio mesmo. O Darwin já escrevera algo assim na época em que passou, então não se pode culpá-los. Talvez pelo Capibaribe não se possa dizer o mesmo dos pernambucanos...

Depois do contratempo com a tempestade em B.A. cheguei em Ushuaia quase à meia-noite. Pior para minhas bagagens, que não foram enviadas junto. Parece que certa desorganização já é uma coisa pitoresca das "Aerolineas Argentinas", que não andam bem das asas...

De madrugada e sem o casaco apropriado, o primeiro impacto da Tierra del Fuego não poderia ser outro: navalhas de vento antártico nos dão as boas-vindas ao sair do aeropuerto. Corremos para o táxi. Eu e 4 australianas, alguns dos muitos "sin-equipaje" daquele dia. Que bueno, na adversidade tendemos a nos unir com mais facilidade e dividir os infortúnios e a tarifa.
No outro dia, zanzar pela cidade aproveitando o tempo firme. Conheci o antigo presídio, reaproveitado como museu, bom passeio. Se o Foucault já dizia que gostamos de afastar da vista tudo que macula a sociedade ideal, Ushuaia tinha vocação natural para a coisa. Como a Austrália para os ingleses, remota o bastante para se livrar dos piores sociopatas. As instalações eram de fato dignas de desgraçados. Na minha experiência, poderia comparar apenas aos piores manicômios do Recife (o Foucault também tinha algo a dizer sobre a segregação dos loucos né). Disseram que ninguém conseguia fugir daqui durante aqueles mais de 50 anos de funcionamento, não pelos muros, mas pelo isolamento incondicional da Tierra del Fuego naquela época. Houve quem passasse dos muros e voltasse para não encontrar la muerte certa no meio do nada.
No museu havia cartazes sobre outras casas-presídio reaproveitadas, como a nossa "Casa da Cultura". Pernambuco falando para o mundo (além do mais, um sinal pessoal que um bom neurótico pernambucano não pode ignorar). A estrutura similar em "panóptico", mais fácil para a vigilância, era moda no século XIX. Além disso, réplicas e mais réplicas de barcos famosos como a caravela de Magallanes e do Beagle de Darwin (woohoo!), e histórias e trecos dos primeiros exploradores da Antártida.