domingo, 14 de março de 2010

El Chaltén, 04.03.2010

Ao norte de Calafate e escondida no meio das montanhas andino-patagônicas argentinas, está El Chaltén. Com seus poucos milhares de habitantes, ainda uma ciudadezinha simpática com ares digamos, menos viciados de turismo, embora se perceba que está crescendo rapidamente por conta do mesmo. Aproveite-se enquanto pode, porque ao menos aqui o parque nacional ainda é gratuito. É só llegar.
No albergue conheço o Brian, americano de nascimento, mas coreano na cara e descendência direta. Assim como o Sumeet, ajuda-me a consolidar uma ideia mais plural dos EUA. Uma terra de imigrantes, talvez não miscigenada como o Brasil, mas não menos diversificada. Com seu trejeito maneiro de californiano aos 23 anos, Brian me instiga a fazer trilha logo de cara. E nos vamos. Hasta el "Chorillo del Salto", una cascada muy cerca. O caminho curto não foi dos mais empolgantes, mal cantamos 3 canções dos Beach Boys. E ao chegar, muy bien, um belo exemplo de cachoeira patagônica de águas claras (y frías) de degelo. Lembro-me novamente do velho professor, que dizia: "é nas quedas que o rio mostra sua força". Uma metáfora de uso corrente, sem dúvida. Decidimos subir por uma trilha até a parte superior da cascata. Nada mal, uma boa vista dos campos logo abaixo. Sentamos e conversamos um bocado sobre os "fatos da vida". Ele tem uma namorada meio vietnamita-alemã que está morando em Hong Kong (mundo vasto mundo). A primeira garota, estão juntos há 3 anos. Seria ela "the one"? Tento transmitir-lhe algo do alto dos meus 30 anos de encontros e desencontros. Não que se possa responder à (fa)tal pergunta de alguém, claro. Minha primeira camada se revela um tanto cética, lembro de meu irmão Othon ecoando Vinícius: "de cada amor herdarás só o cinismo". Divagando um pouco mais, lembro-me do que dizia a Annika, cantora sueca do Hello Saferide. "Na vida, todo mundo que conhecemos nos lembra alguma música". Se ela te inspira "God Only Knows", então não precisa mais procurar. Ele concorda que a canção dos Beach Boys não é prá qualquer um. Pfff, meu filho - romantismos idealísticos à parte - faça como quiser, mas faça sua escolha de vida: sua "walk of life". Também conversamos sobre livros. Aparentemente ele é fã do Kerouac e do Salinger, em especial do "Apanhador No Campo de Centeio". Comendo uma barra de cereal, relembro como também me fascinou há uns 8 anos a narrativa franca do Holden Caufield, que fala ao âmago de qualquer jovem às voltas com seu "coming-of-age", passagem à adultez. Fase de conflitos marcantes de identidade, propícia a crises e eclosão de transtornos mentais. Bem, mas não é assim que trata o Salinger. Ele prefere as metáforas. Em meio a casuais e não menos acachapantes constatações da hipocrisia reinante e do vazio à espreita numa perspectiva de vida incerta, o marginalizado (mas não alienado) Holden sonhava na vida segurar as crianças que brincam na plantação à beira do despenhadeiro. Taí um livro que mexe com as pessoas (inclui-se o psicótico assassino de Lennon), de qualquer lugar.

Para a volta, ainda um tanto carentes de adrenalina, decidimos descer pela encosta oposta, sem qualquer trilha à vista. Isto é, decidimos nos embrenhar no mato até fazer nosso próprio caminho de volta para Chaltén. Nada de zorros (raposas patagônicas), huemuls (tipo de cervo) ou pumas no caminho; apenas uma amostra de natureza em estado natural, com o perdão do pleonasmo. Sem a mão tendenciosa do homem, uma coisa fica clara: nada mais natural que a morte. Cadáveres de troncos petrificados por todo lado servem de abrigo e substrato para tantos outros seres, lembrando que o ciclo da vida é a regra. Só pode haver renovação onde há perecimento. Mais abaixo, mato mais alto e mais árvores, trazendo uma pontada de incerteza de nossa localização. E se não houver passagem? Teremos que encarar uma dura subida de volta até o topo do morro. Tudo bem, enquanto houver luz, haverá tempo. Deixo a mente divagar. Assim foram talhados nossos genes: para sobreviver, competir e reproduzir. Milhares de anos de evolução natural em ambientes inóspitos para chegar aqui. Se Darwin estava certo, a luta pela vida proclama em nós as vitórias de nossos antepassados. Existe uma memória filogenética de cavernícola matador hibernando em cada urbanoide sedentário, apenas aguardando o estímulo devido para a luta (ou fuga, claro). Esse pode ser um pensamento bem revigorante para momentos selvagens. O medo é natural, o pânico que paralisa é um capricho da civilização neurotizante. Vinde a mim, ó pumas.
Os pumas não aparecem, mas sim a trilha para Chaltén, em poucos minutos. Um gostinho de vitória, não fomos selecionados para reciclagem, ainda. Já podemos pensar no jantar. A civilização entretanto, vai ter de esperar. Não há internet nos albergues. Posso dormir mais cedo sem as divagações e comunicações virtuais de praxe. Quanto menos comodidade, mais liberdade?

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