quarta-feira, 3 de março de 2010

Torres Del Paine, 27.02.2010

Acordo para um dia que promete ser longo pelas caminhadas de mochilão nas costas. Como bom cavalheiro, terei a barraca de casal como companheira inseparável de trilha, totalizando os 15kg de bagagem. Ok, a Julie é esportiva (instrutora de ski), mas é tão pequenina. Não posso negar entretanto que ela me deixou chateado por jantar o sopão mixuruca ao invés da massa que tínhamos combinado de fazer. Ok, estoicismo, lembre-se: tudo no seu lugar nesse cosmos. Talvez meu pai dissesse que estaria sendo bobo e não estoico ao engolir sapo, digo, a sopa, sem reclamar. Enfim, meu pai não está aqui, então vamos cuidar de desarmar a barraca. Levei mais tempo do que previa empacotando os trecos (maldito saco de dormir), ainda pegando o jeito, enfim. Para não atrasar meus colegas expedicionários, tive de me contentar com uma maçã no café-da-manhã. A esta altura, a terra já tinha tremido mais ao norte do Chile, e o tsunami deveria estar varrendo a costa. Nesta perspectiva, definitivamente eu continuava sendo um cara de sorte, afinal, é mais um dia bonito em Torres Del Paine...
Gold road's sure a long road. A estrada para o ouro é definitivamente longa. As tiras do mochilão começam a pesar e cada dorzinha no ombro vai se avolumando em tortura chilena. Logo me sinto fraco e meio enjoado. Teria sido o balanço da terra? Pfff, não me faltavam motivos. Depois de umas 4 horas de caminhada, chegamos ao "Acampamento Italiano". Aí devemos deixar a bagagem e seguir a perna média do W pelo Valle del Francés. Aliás, como tem francês por aqui. Pensando no restante do caminho a seguir até o acampamento Los Cuernos, onde deveremos chegar exaustos às 20:00 para montar a barraca, decido me poupar. A meio caminho, a perna média do W fica prá outra vez. Torres del Paine tem um jeito peculiar de te oferecer os maiores deslumbramentos da vida. O preço a pagar é a exaustão física até o reconhecimento dos seus limites. Melhor cuidar de me alimentar direito esta noche se ainda quiser chegar inteiro ao Cerro Torres.
Após mais luta contra o vento e muita pedra pelo caminho, chego a Los Cuernos, antes dos colegas expedicionários. aaaaaahhhh. São 20:00, mas não dá prá descansar ainda. Preciso montar a barraca. Terreno duro, difícil de enfiar as estacas até o fim. Prá piorar, o vento se faz mais presente do que nunca; travesso, zomba do meu cansaço. Termino a montagem e vou ajudar David na dele. Estava tendo dificuldade com o piso pedregoso. Na verdade, posso dizer que ele esqueceu a fleuma inglesa e ficou puto mesmo. Foi reclamar com a administração do camping por não conseguir firmar as estacas. Vamos lá, a gente consegue. E conseguimos. Julie e Marjolein chegam logo depois. A holandesa me abraça, incrédula do próprio esforço. Pouco depois, descobrimos do terromoto, e que por conta dele não há comunicação com Santiago. Deve ter sido grave. Só posso torcer para que o povo não esteja arrancando os cabelos em casa.
Neste acampamento, uma refeição decente no refúgio é o nosso prêmio auto-consignado. Por 10.000 pesos (~R$30): sopa y pan, carne con legumes, sobremesa bate-entope e cerveza por fora. 2.500 pesos por cada "Austral", talvez a pior cerva que já tomei (neste caso, a melhor pior cerveja da minha vida). Não há concorrência, então não há barganha. Com a barriga cheia, só me resta capotar no saco de dormir. São 23:30, sigo Julie até a barraca em plena escuridão. Se não me engano, foi aqui que armei, mas onde está, não pode ser... gaaaahhhhhh!!! Nosso pior pesadelo: barraca virada. E a ventania furiosa não dá trégua, parece querer arrancar as 2 estacas que ainda sustentam. Julie atônita, só consegue reclamar. &$%¨$#! "O que foi que você fez? Como foi armar aqui?" Isso é realmente encorajador. Sem tempo para pânico ou discussões, imploro por compreensão enquanto tento analisar o problema com a pouca luz de sua lanterna de cabeça. As estacas ainda estão no chão, então o que aconteceu? O vento tanto insistiu que as frestas entre o chão e as estacas foram o suficiente para deixar tudo voar. Algumas pedras devem resolver a "vedação". Julie perde a pouca paciência e se vai. Depois de minutos que parecem horas de muita luta à pouca luz, consigo habitar a cabaninha. Com a adrenalina ainda em alta, a ventania incessante mantém o clima de Bruxa de Blair. Será uma longa noite. Julie retorna com David, e depois de mais alguns ajustes pedregosos, decide que pode dormir na barraca. Pede-me desculpas por ter surtado. Ça va, je comprends, ce n'étàit pas facile. Lembro-me que o último filme que vi em casa foi o Mágico de Oz. O vento nem sempre é seu inimigo. E curiosamente, dentre os caprichos desse parque maluco e seus microclimas: essa noite não faz frio. Após um dia duro na terra, enfim... The wicked witch is dead.

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