quinta-feira, 18 de março de 2010

De El Chaltén a El Bolsón, 07.03.2010

Ruta 40. Famosa via de ligação das províncias austrais da argentina. Tengo que sair de Santa Cruz hasta Río Negro, atravessando Chubut em toda sua extensão. Mais de 30 horas de estrada. Haja poeira pelos longos trechos de rípio. E muita patagônia na janela: pradarias intermináveis, carneiros, ovelhas, carneiros, vacas, cavalos, ovelhas... gente aqui e acolá.
No ônibus, todos turistas. Franceses, ingleses, coreanas, israelenses, alemães, argentinos... um verdadeiro Bacurau de Babel. Nada contra. Faz parte da graça da coisa, não se entender quase nada do que se ouve. Assim também fica mais fácil conhecer outros andarilhos solitários. Ao meu lado, uma moça loira sardenta que parece saída de algum seriado da BBC. Bingo, trata-se de uma inglesa, Lizzy. O apelido dela logo me remete a um personagem deveras marcante na literatura inglesa: a Elizabeth de "Orgulho & Preconceito". Jane Austen sabia construir uma heroína romântica de carne, osso e nervos. Numa época em que as mulheres tinham pouca voz e deviam se conformar às limitações da sociedade patriarcal (isto é, aspirar a um casamento vantajoso), a Lizzy tinha personalidade de sobra para desconcertar o impávido sr. Darcy. Uma moça culta, inteligente, sensata e autodeterminada, mas não menos humana, terna, suscetível e passional (portanto propensa a preconceitos). Embora a ficção bem construída faça a gente sentir que ela existe, hoje em dia é difícil de imaginar uma mulher assim (não vou entrar nos méritos do Darcy, para não me deixar complexado). Conscientes desta imagem e peso de seu nome, minha vizinha de ônibus teria que ser alguém no mínimo legal. E se provou de fato uma boa companhia para a lo(ooooo)nga jornada.
Coincidentemente de fato, a Lizzy calhou de conhecer uma recente amiga minha quando em Chaltén: Marjolein. E qual não foi a minha surpresa ao descobrir que Lizzy se tratava de ninguém menos que a afamada Cinderella de Torres (a moça que perdeu o sapato no rio). De novo, Patagônia vila de pescadores. Ela me conta que recuperou um dos pés, mas o outro se foi, gone with the stream. Assim descobri o fim da história: ela tomou um par de tênis velhos no refúgio e eventualmente chegou ao fim do W, inteira, mas não incólume. Com o sapato velho seu pé esquerdo inchou e se tornou um fardo para esta viagem. Estava se virando à base de comprimidos. Ofereceu-me um para dormir, agradeci recusando, e como psiquiatra só pude sugerir a ela que não abusasse. Como médico, observei que seu pé estava efetivamente inflamado e com sinais de infecção local. Ela me disse que já tinha tomado uma dolorosa injeção glútea aplicada por alguém que me descreveu como um farmacêutico tarado. Mardito Benzetacil. Recomendei-lhe antiinflamatório, alguns cuidados tópicos, e boa sorte. Retorno em 1 semana, em Bariloche. Se o destino nos convier.
Também nesta longa viagem conheci a finlandesa Hannah. Montana. ha ha ha. Estava cansada de ouvir essa piadinha. Aparentemente a heroína adolescente americana é tão popular aqui quanto no Brasil. Vagamos pelas calles de Perito Moreno (a ciudad, não a geleira) depois do almuerzo. Quer dizer, na hora de la siesta, na Argentina como na España, quase tudo cerrado das 14 às 18:00. Aí a vila fica realmente monótona.
As cidades argentinas parecem ter um tanto em comum. Desenvolvem-se em torno de uma avenida San Martín, com alguma avenida Júlio Roca paralela, e as secundárias bem simétricas, assim planejadas ao que parece (não aquela humana zorra brasileira). Fica-se familiar com elas rapidamente, e é difícil se perder. Sentamos num gramado para ler enquanto passa o tempo.
Em princípio, pode parecer legal que todos os países sulamericanos tenham cada qual seus próprios heróis nacionais para estampar nas placas e notas, sobretudo os tais "Libertadores da América", como Bolívar, San Martín ou O'Higgins. Como Tiradentes e Bernardo Vieira de Mello foram derrotados, difícil algum brasileiro ter orgulho de sua independência conferida pela metrópole portuguesa em favor da mesma família real (nada burros os patrícios). Assim fazemos pouca questão de ter uma "Avenida Dom Pedro". Por outro lado, a conquista pacífica da independência permitiu que não nos esfacelássemos como a américa hispânica, e também não precisamos de animosidade contra nossos vizinhos a não ser no futebol. Chilenos, argentinos, bolivianos, peruanos, equatorianos, têm história de conflitos por fronteiras que deixaram marcas até hoje. Em nossas conversas, argentinos já se referiram a chilenos como "afanadores de tierras", mas criticam a idiossincrasia de seu governo conceder as mesmas terras ao interesse do "capital estrangeiro". A coisa se complica se pensarmos nas cagadas brasileiras no desgraçado Paraguai, que aliás é ignorado por 9 entre 10 mochileiros. Se tinha que cantar louvores ao Duque de Caxias no exército, fazia-o com crítica, depois desiludido e indiferente. Amar suas raízes é bom, como é boa a comida da mãe, mas nacionalismo mais me parece bobagem - senão francamente nocivo enquanto arma de manobra em massa. Vale lembrar que Nazismo é corruptela de Nacional-Socialismo. Além do fervor "bolivariano" de Chávez, e suas perigosas baboseiras escrotocráticas. Prefiro guardar a bandeira para a copa do mundo ou olimpíadas. Legal mesmo seria se partilhássemos a cidadania terráquea. Um mundo de todos, sem fronteiras, como dizia o Lennon. Rest In Peace (sem ídolos ou mártires também).

2 comentários:

  1. Morri de rir com teu post - vc escreve tão bem! Ah,sim, e em relação ao seu "gentil" scrap, do tipo "morde e assopra", o fato é que sou muito doce mesmo - e bem além da superfície - com aqueles que amo, e vc sabe bem disso. Um beijo, ingrato...;)

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  2. lo se, cariña... te quedes tranquilla, era una broma del tipo que solo puédo hacer con usted. ;) besos! y muchas gracias por las palabras gentiles, por supuesto... aún que yo no las mereça.

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