sexta-feira, 5 de março de 2010

Torres Del Paine, 28.02.2010

Felizmente sinto-me relativamente disposto pela refeição substancial da noite anterior. Seguimos viagem pela trilha no dia que promete ser o mais longo dentre os 4. Aqui e acolá, o parque continua a nos brindar com paisagens sensacionais das mais variadas. É impressionante como tanto cartão-postal distinto possa se reunir num só lugar. Chego a sentir-me na minha própria saga da Terra-Média, tal é a multiplicidade de ambientes que se sucedem e nos surpreendem a cada (exaustiva) colina que cruzamos. Quem não tem Nova Zelândia, se vira com Chile numa boa.

Aventura, teu nome é Torres Del Paine. A todo o tempo dois filmes a que recentemente assisti me recorrem na mente. O primeiro, mais conhecido, é pérola para 10 entre 10 trekkers: "Into The Wild". Parafraseando o McCandless: "Sei quão importante na vida é não necessariamente ser forte, mas sentir-se forte; medir-se ao menos uma vez (na natureza selvagem)". O outro me ocorre em momentos menos líricos: "O Homem Urso", de W.Herzog. Encarando com germânica sobriedade a natureza das coisas, ele filosofa: "Acredito que o caráter comum do universo não é harmonia, mas caos, hostilidade e assassinato". Nada mais humano, entretanto, do que tentar dar sentido pessoal e transcendental a cada ato natural. Escolhemos não por acaso realizar a trilha a favor do vento. Houve diversos momentos em que ele se intensificava repentinamente. Em alguns, eu estava tão exaurido que abria os braços e o parque parecia querer soprar-me até o final. Em outros, eu estava margeando abismos, e a sensação de ser arrastado me fazia pensar: "este não é lugar para gente", esquecia a foto e acelerava o passo.

Se a natureza nos é indiferente, mãe ou hostil, depende da fé de cada um. Em Torres del Paine, como não poderia deixar de ser, quando você pensa que o pior já passou, pense de novo. Perdi a conta de quantas pontes rústicas cambaleantes de madeira tive de cruzar. Dessas com corrimão único, ou algumas tábuas a menos aqui e ali. Depois da terceira ou quarta, você já abstrai dos pesadelos de criança e começa a estimar sua rudimentar arquitetura como sendo "prova do engenho humano a serviço da integração paisagística". O problema passa a ser então quando elas faltam onde deveriam existir...
A certa altura, tivemos de cruzar um rio pedregoso na marra. Em alguns trechos, saltitando de pedra a pedra, tudo bem. No entanto, em um momento, não havia tronco atravessado que resolvesse: teríamos que encarar a água gelada. Neste trecho, todos andarilhos paravam pelo menos meia hora para analisar "friamente" a situação. Se andar com pés e calças molhadas ao vento frio já seria um problema para o moral combalido, imagina então perder um pé do tênis (aconteceu com uma garota, a agora lendária Cinderella de Torres) ou enfim, ser arrastado correnteza abaixo até uma pedra mais condescendente. Game over na certa. Lembro dos dias de exército: "se está no inferno, abraça o capeta". Depois de matutar alguns minutos a fio, o David me joga seus chinelos, amarro meus tênis na mochila e decido encarar sem maior ponderação os perigos do rio. De cara, as pedras não se firmam, e dou com o pé-de-chinelo na água gelada. gaaaahhhhhhh. Magoa como navalha na carne. A dor se transforma em pressa e a ansiedade me deixa bem pouco habilidoso. fjondiarjtemvfmspiggggghhhhhhrrrrr... na outra margem, molhado acima dos joelhos, curto momentos de agonia sobre plantas espinhosas. Ufa, pela minha experiência em trilhas brasileiras, subestimei esse rio. Água fria dói, muito. Dura lição, a hipotermia. Mas enfim, estou vivo, e o dia não acabou...

Depois de muita pedra e pradarias, o deslumbrante Valle Ascencio. Poizé, mais montanhas, então haja subida. Afinal, precisamos completar os 20km que nos levam ao acampamento Las Torres, à beira dos picos. Armada a barraca, às 20:00, dá prá preparar nosso delicioso jantar de massa pré-pronta. Peço perdão aos queridos pés, coitados, tão inocentes. Meu celular com gps sem sinal ainda serve para algo: acerto o alarme para as 6:00, e me responsabilizo por acordar os colegas. Temos que acordar cedo e encarar no escuro mais uma hora íngreme para testemunhar o famigerado "Amanhecer do Cerro Torres".

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