quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Manifesto ontológico básico para um cerumano perdido e confuso (ou: ensaio para uma psiquiatria humanista de libertação)



Se tem uma coisa que ficou cristalina pra mim em 36 anos de vida e 13 anos ouvindo obsessivamente os relatos de alguns milhares de pacientes é que há sim cura possível pra uns 95% dos transtornos mentais, mas a maioria não vai ficar imediatamente "feliz" em saber. Nunca curti auto-ajuda, mas já que notei (com a ajuda da Filosofia, Psicologia e da Arte) um padrão que a maior parte das pessoas evita ou não consegue reconhecer, tenho de dizer alguma coisa. Quem tiver curiosidade (coragem?) e paciência entre e fique à vontade. Vou destrinchar em "poucas" palavras aqui embaixo, mas comprem o livro depois! ;P Aviso logo que sou viciado em verdade, doa a quem doer. Acho que o bom cinema me fez assim. E não reparem se eu repetir algumas noções ao longo do texto, "lavagem (da roupa suja) cerebral" é um negócio complicado...

Todo transtorno mental é basicamente um estilo adaptativo (conciliatório) entre o ambiente interno (nossos desejos, ideias e afetos) e externo (mormente os relacionamentos sociais e seus modelos básicos - nossas famílias, e são todas meio doidas). Sendo o cerumano (cerúmen de Deus, se existir algo assim) um bicho necessariamente social e bastante dependente dos pais ao longo dos primeiros anos (mais que qualquer mamífero), decorre que começamos a estruturar nossa mente em resposta às interações com eles. Somos assim seres históricos, desdobramentos de nossos antepassados. Desta forma, se a identidade (auto-imagem x auto-estima) é necessariamente definida na relação com o outro, estamos fadados a fundar nossa existência como uma *consequência inevitável dos nossos pais*. Quer se goste ou não disso, a história é um fato inapagável dentro de cada um. Disso decorre que todo transtorno mental é uma maneira de se adaptar aos conflitos emergentes na relação entre a realidade presente e a nossa memória, os nossos resquícios históricos - os nossos desejos, sentimentos, emoções e ideias implantadas desde cedo via "amor" (necessariamente ambivalente como a auto-estima) dos pais. Em outras palavras, a grande maioria dos transtornos mentais constitui-se de desdobramentos desse apego ambivalente, ansioso (merci Piaget), contraditório, introjetado a partir das figuras parentais (reforçando, talvez, arquétipos patológicos geneticamente transferidos?).

Daí a cura, terrível cura possível consiste inevitavelmente em "desapaixonar" o cerumano (esse bicho dramático sempre de alguma forma autodestrutivo) de seu próprio passado. Reorganizar sua personalidade (auto-imagem x auto-estima), deseducar-se das representações mentais distorcidas, aliviar o peso de sua memória, sobretudo a mais inconsciente possível. Necessariamente reaprender a viver. E mudar a música interior (senso do eu) e o jeito de dançar (relacionamentos) demanda questionar e remodelar a própria memória e com ela o tal sentido da vida. Cair em si. Em uma palavra: amadurecer.

Somos bichos dramáticos egoístas autodestrutivos profundamente contraditórios, mas também potencialmente bons pois naturalmente inclinados à verdade e justiça (só que distorcemos nosso senso de justiça misturando passado e presente e cobrando do mundo o que nossos pais não deram, replicando injustiça no caminho). A gente se sente melhor à medida em que se sente mais verdadeiro consigo mesmo. A pergunta que não quer (nem deve) calar: quem sou eu? A resposta possível está sempre dentro de nós, a única maneira de conhecê-la é sondando a própria história da forma mais franca, humilde e corajosa possível.

Sim, todos os pais são extremamente imperfeitos: em algum nível ambíguos com seus filhos, frequentemente injustos, pouquíssimos são de fato verdadeiros (consigo e com os filhos) e menos ainda são humildes a ponto de perceber e admitir isso aos próprios filhos. A libertação possível está na maneira de reviver o passado de forma emocionalmente significativa: ressignificar-se. Donde provém a dura cura longamente adiada: a gente só se liberta do passado (e com ele do transtorno mental enquanto fixação infantil e adaptação decadente e distorcida ao ambiente) aprendendo a ODIAR e PERDOAR repetidas vezes nossos pais. Claro, odiar é *legítimo* mas não te dá o direito de equiparar-se ao querido dito cujo e manipular, agredir, xingar, humilhar! Isso seria vingança, a tentação-mor e mola-mestra do ciclo da ambivalência. A culpa subsequente é inevitável, acredite, e só retroalimenta o drama.

É isso mesmo que você leu e repito: para se libertar do DRAMA sendo você um cerumano comum precisa aprender (é mais difícil do que parece) a odiar e perdoar suas figuras parentais, até que a morte os separe? Não necessariamente! Com boa vontade podemos sim quem sabe chegar à inevitável conclusão (reconciliados com eles se possível - e isso não depende só da coragem/humildade da gente): nossos pais são crianças (Renato Russo deve ter salvado muito adolescente) solitárias, egocêntricas, carentes, frequentemente ressentidas (com os próprios pais - rá!), por natureza repetitivas (e potencialmente vingativas), em suma profundamente despreparadas. Como nós. E sempre se pode ter raiva de crianças, mas numa pessoa madura isso deve durar uma fração de segundos. Tripudiar ("passar na cara") ou guardar rancor? É injusto, insensato, e pior, é (auto-)aniquilativo. O rancor é o veneno que se toma achando que o "outro" vai morrer. E no entanto, tem muita gente se refestelando (obrigado colega Macarof) dele neste exato momento, em companhia dos seus na sala de jantar (obrigado Mutantes)...

Melanie Klein falava dessa ambivalência na forma de "seio bom, seio mau" (gratificação/frustração), e dizia que na impossibilidade de ver supridos os seus desejos eventualmente "todos os filhos odeiam seus pais". Outro psicanalista chamado Winnicott foi mais longe na raiz do problema e concluiu: "todas as mães odeiam seus filhos" (listou umas 17 razões para tanto, basicamente notando o "amor" enquanto dulcíssima prisão, obrigado Caetano). Estudando famílias de pacientes nos anos 50 Bateson cunhou o conceito "duplo vínculo" (double bind) para se referir a relacionamentos contraditórios onde são expressados comportamentos de afeto e agressão simultaneamente; os membros estão fortemente envolvidos emocionalmente e não conseguem se desvincular um do outro (hoje se prefere falar em "codependência"). O transtorno mental começa no momento em que o filho, não conseguindo compreender essa ambivalência (contradição) no amor dos pais, resolve (na posição inevitavelmente egocêntrica de toda criança) acreditar (em cumplicidade aos pais) que a CULPA pelo sofrimento (ou responsabilidade pela carência) dos pais é dela quando efetivamente não é. A confusão (ambivalência) dos pais já existia antes de ela nascer e descende da infância deles próprios (ou seja, da ambivalência dos seus avós). Foi apenas projetada naquele novo membro à imagem e semelhança de si mesmos. Uma cadeia de ressentimento (ambivalência) familiar repetida (às vezes reforçada, às vezes diluída) de geração a geração. Karma?

Quando vai dar por si a criança (quando deixamos de sê-lo?) já está envolvida no drama familiar até o pescoço e vai passando paulatinamente de vítima a cúmplice da história (histeria) familiar. Por conta de nossa natureza ontológica (existencial, ciente da própria finitude) preferimos naturalmente ser odiados a ser esquecidos, então muitas vezes fundamentamos nossa existência e personalidade nesse drama pra fugir do vazio. Paradoxalmente apostamos até no sadomasoquismo ou autodestruição pra dar sentido à vida. Para além das causas somáticas e psíquicas do sofrimento humano, é preciso reconhecer no sofrimento sua origem propriamente existencial (espiritual?), nascido da experiência do absurdo, da perda (ou falta) de sentido na vida. O homem, dizia Viktor Frankl (pai da logoterapia), pode suportar tudo, menos a falta de sentido.

Logo a doença vira um jeito de ser e estar no mundo, resultante de uma tentativa atabalhoada porém cultural e socialmente viável de restaurar algum tipo de sentido para a própria existência ou simplesmente defender-se da ameaça ou da emergência de uma reação indesejável (vingança?) a esta ameaça em questão. Que ameaça (interna ou externa) é essa mesmo? Basicamente a consciência deste ódio sutil (e incompreensível) dos pais ou a possibilidade de ódio (inaceitável?) da gente. A insurgência da ambivalência precariamente solucionada pela anulação de si. Sendo essa anulação em verdade uma introjeção do ódio na forma de ressentimento. Em outras palavras, por um temor alienante de nós mesmos ou de nossos pais (com quem estamos excessivamente identificados, apegados, fundidos) anulamos nossa individualidade em favor da posição de vítima ou refém para com isso adiar indefinidamente a questão, própria do eu adulto, amadurecido, que toma as rédeas da própria história: quem sou eu e para onde vou?

Se algumas religiões em grande medida valorizam o sofrimento e a culpa como estilo de vida, nossa cultura endossa e até em certa perspectiva favorece a *posição de doente*. Um papel ambíguo (vou usar muito essa palavra e suas variantes pra falar de gente, não tem outro jeito) que dá um certo sentido ao sofrimento (real!), mas o distorce, aprisionando involuntariamente no conflito, prendendo-nos à infância. Os mais suscetíveis, perdidos e fragilizados no seio do drama familiar se entregam inconscientemente à posição razoável (supostamente estável) de doente perante a ambivalência (sanha vingativa ou temor de solidão/rejeição) dos pais.

A família é o teatro (fogueira?) de vaidades onde esse jogo neurótico da ambivalência é repetido ad finitum. Não à toa, muitos pais só pedem perdão aos filhos por seus excessos e faltas quando estão à beira da morte. Buscando uma espécie de redenção que antes não tiveram coragem de encarar. Será que temiam (desejavam?) ser destruídos (pela "verdade") antes?

Por que os pais tem medo de (se abrir com) seus filhos e versa-vice? Porque intimamente sabem que erraram, mas inconscientemente preferem persistir na posição de superioridade (orgulho) porque aprenderam (com os próprios pais) a ver nas relações (que deveriam ser) afetivas jogos de PODER. E por que trocam o afeto pelo poder? Porque não confiam no *outro* por quem foram de alguma forma *traídos* no passado. Então se não se tem amor-próprio (auto-estima) suficiente, não se consegue confiar e vincular ao outro de forma equilibrada, e o ambiente familiar frequentemente descamba para uma novela de manipulações culposas e ressentidas. Sim, a CULPA é um perigoso (porque auto-aniquilativo) instrumento de poder. E vamos combinar que cerumano com o ego inflado (de culpa ou orgulho/vaidade) e carente de validação fica *sedento* pelo poder...

Nesta perspectiva ontogenética uma pergunta fundamental se impõe: se as raízes do transtorno mental estão ligadas aos primórdios da relação pais-filhos (talvez no ventre materno? nos gametas??), por que o transtorno geralmente só vem a eclodir de fato ao final da adolescência / passagem para a idade "adulta" ou em outros momentos de mudanças inevitáveis como "perdas" (dos entes queridos! como se fossem *nossos*), separações, nascimentos (de filhos ou irmãos, "estranhos no ninho") ou descobertas de graves doenças? A resposta para isso está nos processos de individuação (danke Jung), quando nos tornamos nós mesmos. É nestes momentos existencialmente estressantes "divisores de águas" que a verdade sobre nossa identidade (auto-imagem x auto-estima) é colocada em xeque. Ao sopro da realidade e com os ventos da mudança, caem as máscaras que frágeis se quebram.

O Sócrates já sabia que não sabia nada e deu a real na Ágora: "Conhece-se te a ti mesmo" (obrigado Rubem Franca). O máximo que se pode tirar da vida é algum conhecimento de si próprio, que como diria Conrad, normalmente chega tarde demais. "Colheita de inesgotáveis arrependimentos". Mas NÃO precisa ser assim. Se conhecer-se é preciso, a ferramenta para tanto deverá ser a *auto-vigilância* (presença mental, "mindfulness", tá na moda), seja numa terapia, lavando os pratos ou num mochilão pela América Latina. Claro, tudo é uma questão de busca do equilíbrio ao longo do tempo. A auto-vigilância (auto-desconfiança) é necessária para refletir, se reconhecer e reconstruir a si mesmo de uma maneira mais madura: confiante e coerente, mas sempre flexível.

Fragilizar-se é melhor que ser prepotente, mas pelas leis gerais da ambivalência pode ser também uma forma distorcida de poder (como se seu coração metafórico autoritário egocêntrico gritasse: "cuidem de mim"). Antes de despir-se com seu filho precisa aprender a tolerar a própria SOLIDÃO para assim reconhecer a própria força. Melhor que se mostrar inseguro é tentar demonstrar segurança empática com o benefício da dúvida onde ela couber. Filhos precisam sim de regras e limites claros, sem os quais sentir-se-iam também soltos, perdidos, desimportantes. Para educar, firmeza com afeto. E assim como vingança não é justiça, firmeza não pode ser confundida com crueldade. Desta maneira, habitue-se a desconfiar de si mesmo, mas a cada fase do seu filho passe sua melhor franqueza com simplicidade almejando criá-los fortes e confiantes (e força não é orgulho nem vaidade, o que muitos pais confundem) para o mundo. Se tivesse uma palavra-chave para definir educar para o mundo ela seria EMPATIA (tanx Rogers).

Problema da empatia é que ela só pode funcionar na medida em que a gente se conhece e se aceita (deveria haver uma espécie de teste de auto-aceitação para candidatos a pai e mãe, tanx Huxley. Brinx =D). Do contrário, as mesmas identificações projetivas podem levar (e frequentemente levam) à destruição (vingança, tensões sadomasoquistas).

Só se pode amar o outro na medida de si, pois o "amor" é esse jogo de múltiplas e íntimas identificações. Sem amor-próprio equilibrado (isto é, sem tolerar a própria SOLIDÃO) não se consegue confiar e aceitar o amor do outro. Daí o apego pode descambar para a dependência ou franco sadomasoquismo (you just keep on pushing my loooove over the boooorderline, apud Madonna).

E o que é o amor-próprio (novamente não confundir com orgulho e vaidade que abundam por aí) senão o amor das figuras parentais introjetado e amadurecido?

Disso decorre: se teu pai (ou tua mãe) às vezes parece te odiar ou desprezar (que coisa!), não se engane, ele em verdade se odeia e projeta esse ódio naquilo em você que remete a ele: o que ele inveja ou que despreza/reprime em si mesmo. Basicamente porque não conseguiu odiar e perdoar adequadamente o próprio pai ou mãe, por isso não aprendeu a se amar de verdade (por mais que tente dissimular com orgulho e vaidade - máscaras, defesas do ego) e assim inconscientemente prefere vingar-se no filho, o bode expiatório (burro de carga? ou contraditoriamente, "príncipe"?) por excelência.

Poizé, curiosamente nós tendemos naturalmente a replicar tudo aquilo que amamos e o que odiamos também. O ódio não é o oposto do amor, mas o próprio "amor" adoecido pela "confusão" (ambivalência do apego). Não por acaso, abusados tornam-se frequentemente abusadores, a não ser que se sintam "merecedores" do abuso, daí se tornam (basicamente) masoquistas, e replicam essa ambivalência com novos "amores" abusivos pela vida afora graças à frágil auto-estima construída, numa espécie de Síndrome de Estocolmo repetitiva. "A gente só aceita o amor que acha que merece" (tanx Paul Rudd).

É impossível esquecer/anular qualquer afeto negativo (ódio, medo, culpa), e tentar fazê-lo só nos afasta de nós mesmos obliterando o EU até efetivamente se aniquilar. Suspeito que a maioria das demências começa assim. Pode-se entretanto sim, com coragem e humildade, revisitar esses afetos negativos na nossa memória meditando ou numa terapia conversando (ou numa mesa de bar? teu amigo vai morgar com medo dos próprios demônios) até dar novo sentido à própria história e ao nosso papel nela (sublimação ou ressignificação), chegando basicamente às conclusões acima além de outras mais (de preferência equilibradas e certeiras, dependendo de cada um que supere suas paixões).

Diria o meu caro amigo budista João Carlos que é possível desapaixonar o passado apenas aprendendo a aceitar a verdade íntima de todas as coisas: a *vacuidade*. Treinar-se para entender o *eu* (ego) como ilusão, e assim esvaziar-se para abrir-se ao todo. Nem precisa relembrar nem reviver nem ressignificar o passado. Seria mais cômodo talvez, mas suspeito que o nosso pendor (vício) ao Drama tende a ganhar da crença no Darma na hora de conversar com os pais ou os filhos... não obstante, recomendo muitíssimo a leitura do livro de Dzogchen Ponlop, "O Buda Rebelde". Essa leitura, a de Proust em quadrinhos e uma certo colóquio meio alterado dos sentidos com meu pai catalisaram a escrita desse texto.

Em todo caso, a moral é a mesma do Budismo (se a gente sofre pelo desejo/apego, a cura é necessariamente o DESAPEGO) e o instrumento o mesmo do Cristianismo, o AMOR que alimenta o perdão (desapego) e a tendência de se religar ao todo (a iiiimunização racionaaal, diria o saudoso e atribulado Tim).

Apenas note que esse tal AMOR tem variadas formas e raramente significa a mesma coisa pra 2 almas carentes. O amor terapêutico a que me refiro é o amor fraternal ou antes universal, desapaixonado e o mais desprovido de "eu" (ou "meu") possível. Acho que na Grécia chamavam de "philos". Hoje talvez em bom português seria (surpresa?!) EMPATIA. Reconhece-se uma pessoa autenticamente curada quando ela vê valor fraterno em todas as formas de vida (inclusive o serial killer psicopata estuprador, por definição ontológica apenas mais um ignorante viciado em sua própria natureza e decadência). Lógico que essa tal iluminação total é para poucos, pouquíssimos abnegados do DESEJO. Porque, infelizmente ou não, tão geneticamente entranhado quanto o desejo de amar (pulsão de vida - "eros") está algo (tendência à competição? *seleção natural*) que nos faz sentir natural prazer em odiar e sobrepujar o outro. Por conseguinte viciosa é a dor e a violência - somos fácil e naturalmente seduzidos pelos aspectos mortais da existência: "tânatos" sempre vence. Essa talvez a premissa filosófico-psicanalítica mais difícil de aceitar, a saber: a de que somos internamente programados para a (auto)destruição ("apoptose" do eu, obrigado dr.Tácito). Não é casual nossa descarga de adrenalina e prazer com filmes de terror e violência (e noticiário policial), bem como nossa busca de situações de risco, mesmo extremos em pessoas mentalmente sãs. Já existem indícios mais científicos dessa aparentemente contraditória programação natural para a morte, como a existência em nós de genes supressores tumorais (!) que se desativam em resposta ao "estresse ambiental" (INTERNO ou EXTERNO). E se você ainda relutar em digerir Filosofia, Psicanálise e Ciência, que tal ouvir Camões?

Amor é um fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói, e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se e contente;
É um cuidar que ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?


Ou Shakespeare?

Ser ou não ser, eis a questão: será mais nobre
Em nosso espírito sofrer pedras e setas
Com que a Fortuna, enfurecida, nos alveja,
Ou insurgir-nos contra um mar de provações
E em luta pôr-lhes fim? Morrer.. dormir: não mais.
Dizer que rematamos com um sono a angústia
E as mil pelejas naturais-herança do homem:
Morrer para dormir... é uma consumação
Que bem merece e desejamos com fervor.
Dormir... Talvez sonhar: eis onde surge o obstáculo:
Pois quando livres do tumulto da existência,
No repouso da morte o sonho que tenhamos
Devem fazer-nos hesitar: eis a suspeita
Que impõe tão longa vida aos nossos infortúnios.
Quem sofreria os relhos e a irrisão do mundo,
O agravo do opressor, a afronta do orgulhoso,
Toda a lancinação do mal-prezado amor,
A insolência oficial, as dilações da lei,
Os doestos que dos nulos têm de suportar
O mérito paciente, quem o sofreria,
Quando alcançasse a mais perfeita quitação
Com a ponta de um punhal? Quem levaria fardos,
Gemendo e suando sob a vida fatigante,
Se o receio de alguma coisa após a morte,
–Essa região desconhecida cujas raias
Jamais viajante algum atravessou de volta –
Não nos pusesse a voar para outros, não sabidos?
O pensamento assim nos acovarda, e assim
É que se cobre a tez normal da decisão
Com o tom pálido e enfermo da melancolia;
E desde que nos prendam tais cogitações,
Empresas de alto escopo e que bem alto planam
Desviam-se de rumo e cessam até mesmo
De se chamar ação.

Basicamente tudo que estou tentando dizer está aí em cima, além de outras sacadas que espero (será que devo?) entender antes de morrer.

Poizé, estava lá o tempo todo e pouca gente vê de fato. É melhor aprender logo a se (re)conhecer se não quiser acabar sendo vítima de si mesmo e de suas "paixões" (mesma raiz do grego para doença, pathos). Por que amamos a *Paixão* de Cristo? Porque gostamos de vê-lo sofrer por nossos pecados (que filme sanguinolento do Mel né)? Porque toda sua história é sobre um cara (bem humano mas iluminado, podiscrê) que sofre e encontra redenção (transcendência?) na própria morte?! Porque promete a vida eterna? Vale lembrar (e muito "bom cristão" confunde isso) que ele falava em amar ao *próximo* como a ti mesmo (mal sabia ele que já fazemos isso intuitivamente, mas há uma pegadinha aí, acho que vocês já sabem qual é) e escolher o caminho dele (o amor universal, philos) é mais difícil e muito mais importante que louvar a ele.

A bem da verdade, se brincar (boa essa palavra) basicamente toda arte perene na história da humanidade tenta justamente traduzir essa misteriosa e "indecifrável" ambiguidade interna do cerumano, e não raro as canções e os filmes de que mais gostamos dão conta desse inefável conflito. Gonzaguinha que o diga, pois escrevia efetivamente sobre o que aprendia na vida (obrigado Marcelle!), seus sucessos tem frequentemente esse tom agridoce (e a vida diga lá, o que é meu irmão?). O indelével sabor do drama. A vida é (uma peça contada por um idiota) cheia de som e fúria. A insustentável leveza do ser. Dá um certo desencanto na gente aprender a pensar nestes termos (os prazeres talvez percam sua sedução, em parte), mas garanto que amplia e muito os nossos horizontes, e isso não pode ser ruim.

Segundo Camus (merci) a vida é a soma total de todas as nossas escolhas (conscientes ou não), e a mais fundamental e constante de todas é: ela vale a pena ser vivida? (vida x morte). O que nos remete à questão fundamental do *suicídio*. Pessoalmente acredito na eutanásia, e não tenho dúvida de que nossos filhos (netos? oooh) terão direito a escolher sua morte mais branda (e festiva? por que não?!) no momento em que a vida deixar de valer a pena (basicamente, por conta de dor física ou caquexia insuportável). A bronca é que a maioria dos muitos pacientes que ouço falarem em "besteira" (matar a si) estão na verdade justamente "apaixonados" pelo seu passado, carentes, temerosos, culposos ou (sobretudo) ressentidos. Não conseguem dar sentido à própria história e vêem a morte como uma saída "justa" e, tragicamente, não raro uma espécie de vingança. Tento logicamente ajudá-los a dar sentido à própria confusão de sentimentos/desejos, validando sobretudo os mais difíceis ("pode odiar seus pais, no seu lugar eu provavelmente sentiria o mesmo") e eventualmente estimulando ao *desapego* (perdão perdão perdão) sobretudo dos pais. Felizmente até agora tem dado certo. =)

A bronca é que o tal do desapego é obviamente mais difícil do que a gente pensa ou gostaria, pois o apego é em grande parte inconsciente, enterrado em uma infância remota em que a gente nem sabia o que significava culpa, mas já sentia seu superpoder ditatorial. E naturalmente esse apego persiste mesmo após a morte ou afastamento físico dos nossos pais, sendo via de regra transferido às outras pessoas que nos *importam* ao longo da vida, perpetuando o ciclo da ambivalência. E por que tantas pessoas que sofreram muito na infância parecem ser extremamente apegadas aos pais e sofrem ao ponto de desejar a própria morte quando eles se vão? Porque de fato, a vida encontra um jeito de fazer a gente se adaptar se viciando no que temos ao dispor, seja dor ou prazer (diria Aristóteles que são espectros da mesma coisa, e que ambos nos afastam da VIRTUDE). Se sentimos quando crianças o "bafo do vazio" (rejeição), a proximidade (real ou fantasiada) do abismo nos faz atirar-nos desesperados a quem temos ao dispor (o Pânico é frequentemente a persistência dessa "impressão" na idade adulta). Paradoxalmente, se guardamos *rancor*, sentimo-nos culpados quando algo de ruim acontece aos pais, e inconscientemente nos flagelamos. Se somos apegados demais sequer percebemos o rancor ou a culpa, sofrendo ainda mais confusos. Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Encarar a fera é preciso.

Seguindo as leis gerais da Ambivalência notamos que em um nível profundo medo e desejo são também faces da mesma moeda. Daí decorre que o que nos vicia parece ser o desejo carnal de ligação, mas sua face mais profunda é o temor de REJEIÇÃO, que nas fantasias infantis mais primordiais seria igual a morte/aniquilação (e de fato, para uma criança um medo perfeitamente razoável, sábia natureza, choremos). Em todo caso, a persistência neste drama indica uma hesitação em lidar com a solidão - desapego aos pais (talvez porque sentimos vaidosa e enganosamente que podemos fazê-los felizes ou que dependem da gente pra viver) - e aprender a se bastar (amar). Pra quem estiver tentado a sentir pena de si mesmo (auto-desprezo, o tal poder ambivalente da culpa) pela infância f*** difícil, lembre-se de que "o que não mata fortalece" (danke Nietzsche), e de fato, quem muito se ferrou pode sim (aceitando seu passado em boa hora), tornar-se um bem-aventurado sábio senciente (ooops, talvez nem tanto).

Se você bom neurótico ainda achar difícil perceber onde ou como seus pais te odiaram ou como sem querer (queriendo? gracias Chavo) sabotaram sua auto-estima, talvez seja porque teve um relacionamento equilibrado e foi criado por pais maduros bem-resolvidos para encarar o mundo numa boa, e seguir confiante mesmo após a morte deles. Parabéns, mas tá mais pra exceção que (confirma a) regra. E cuidado, se você se sentir suspeitosamente vaidoso ou orgulhoso talvez seja porque eles te "amaram demais" te seduzindo com isso a suprir os desejos, carências e frustrações deles. Pode parecer bom a priori (em detrimento dos irmãos enciumados?), mas este é o outro lado da moeda patológica da ambivalência do apego, quase tão grave quanto o ódio/desprezo: a supervaloração (aquela coisa de "meu príncipe" ou "mi vida").

Colocar seus filhos num pedestal é a maneira mais cômoda de puxar-lhes o tapete um dia, pois os condena a passar um bom tempo lutando para *validar* seu ego artificialmente inflado. Não tenho dúvida de que grandes feitos da humanidade foram alcançados por pessoas movidas pelo próprio ego que queriam provar o próprio valor (viva Napoleão, Van Gogh, Mozart, Hemingway, Ulysses Guimarães e outros tantos bipolares), mas se a inevitável queda da vaidade (ou orgulho) for demasiado dolorosa, lembre-se de que você também foi primordialmente iludido a acreditar numa pretensiosa superioridade pelos seus pais carentes e inseguros (pra envaidecer-se ou compensar-se por tabela? ou talvez pra que seus irmãos enciumados competissem contigo pela preferência deles?). Se estiver tentado a se odiar, mais JUSTO odiar a eles (*legitimando* seu lado infantil), eventualmente perdoando (e perdoar a eles facilita perdoar a si) e aprendendo a dura e talvez mais importante lição da vida: a humildade fundamental. Não demora até a próxima onda ou rasteira existencial, já que a verdade última é a transitoriedade (vacuidade João?) de todas as coisas. Mas com alguma humildade quem sabe se pode fundar uma personalidade maleável mais resiliente capaz de rir das próprias tragédias. Porque no final das contas é isso que conta pra se curar: criatividade pra reinventar-se a cada bomba vital, sobre os escombros do último castelo de areia.

Ah, a tal Histeria... Essa nossa capacidade inata de meter os pés pelas mãos deve ser a melhor forma de envolver a sociedade (organismo) no que se passou em nossa família (tecidos) e se replica exaustivamente dentro de nós (células). Como via de regra somos muito bons atores (mestres no auto-engano), felicidade não pode ser um objetivo (e seguramente não reside em uma ou muitas pílulas), ela está muito mais para uma característica de uma vida bem-aventurada. E, me corrija João se eu estiver errado, segundo o budismo o caminho para uma vida buena passa pela GRATIDÃO e a COMPAIXÃO (condescendência talvez melhor pra não confundir com pena, que é uma espécie de desprezo disfarçado). Ao invés de esperar os outros te fazerem feliz (desilusão, desilusãããão, danço eu, dança você na dança do coração, ooops solidão) convém experimentar ser generoso, sobretudo quando se sentir razoavelmente bem-resolvido, confiante (se tentar fazê-lo na merda provavelmente estará se anulando e sendo escravo de alguém). Embora não negue a virtude do ideal budista, a moderna Psicologia sintetiza felicidade como resultante do prazer (o menos decisivo), engajamento e sentido que se tem na vida, conceito que me soa mais realista para a maioria das pessoas. Em tempos de facebook nossa natureza competitiva (invejosa) parece transformar a felicidade numa obrigação social, e essa tendência me parece perigosamente mediocrizante pois nos seduz a viver de aparências e nos afasta de uma experiência humana mais rica, aprendendo a lidar com o inevitável sofrimento e não (apenas) se iludir. Pra mim, mais importante que ocupar-se de ser feliz (deixa isso pra velhice) é descobrir seu talento e realizar seu potencial tanto quanto possível. Construa seu conceito de felicidade, mas sempre lembrando a moral universal de McCandless: felicidade só parece real quando compartilhada (happiness only real when shared, rip Chris). Praticar philos na vida é como tentar ser amigável com todo mundo, a amizade (amor desapegado) é mais alvissareira que o amor.

(Esse parágrafo diz respeito aos meus entes queridos então podem pular se estiverem agoniados - a ideia era essa =P) A propósito, obrigado a meus pais e irmãos e cunhadas pela incondicional legitimidade (provavelmente mais importante que o reasseguramento) do afeto. E aos muitos pacientes da Tamarineira (Hospital Ulysses Pernambucano), dos CAPS (Livremente e Galdino Loreto) e da Ampare por todas essas lições aqui explanadas (obrigado aos respectivos pais por me aguentarem e até validarem, estão frequentemente loucos pra serem desmascarados por outrem). Minha profissão é de fato abençoada. Gratidão também aos mestres Othon Bastos, Tácito, Ângela, Éverton, João Alberto, Mabel, Osmar, Lúcia e a reca. Obrigado a minhas preciosas colegas Amanda e Sara e aos chapas Fred e Deyvis pelas infindáveis reflexões de sala e bar. Minha querida Vanessa pelo apoio e confiança. Grato também a Isabel, minha professora de português (e... desculpa?). Se a vida é a arte do encontro, frequentemente encontramos pais acessórios ao longo da jornada, mormente os professores (além dos médicos e terapeutas! Viva a transferência) em quem podemos confiar e nos identificar. E ao final (e mais importante) obrigado à minha querida e analfabeta (mas sábia) avó/mãe Nenê (in memoriam), é graças ao seu amor e tantos exemplos de compaixão que desfruto de minha vida e adoro fazer o que faço para e com o povão. Tá bom de agradecimento, que a sede verborrágica ainda não passou...

Ontologicamente (existencialmente) solidão é quase o mesmo que LIBERDADE. Liberdade não é (não meeeesmo) felicidade, mas sim um caminho fundamental para a *independência*, essa sim, quase um sinônimo para maturidade, raiz da verdadeira saúde mental. Para alcançarmos independência e resiliência consistentes precisamos transformar o máximo de nossa (mais fácil e natural) ignorância (a raiz ontológica de todo mal) e seus derivativos Histeria e Hipocrisia (a cola social por excelência, já que a maioria das pessoas não pode saber nem aceita certas "verdades") em SABEDORIA (considero o cinismo um bom começo, embora a ironia seja uma defesa perigosa - tanx to the dandys Wilde, Jarvis). Pode-se então dizer que para nos permitir uma vida livre e bem-aventurada necessitamos basicamente APRENDER (a amar?). Lev Vygotsky já dizia que o ser humano constitui-se enquanto tal na sua relação com o outro, e que portanto desde o nascimento a aprendizagem relaciona-se ao desenvolvimento, sendo a principal causa para o desabrochar do ser.

Ressalve-se que quando falo em aceitar a própria solidão obviamente não estou falando que aplaudo a era do individualismo (valeu Rodrigo!) tecnológico (em que pesem meus sinceros agradecimentos ao Guroogle). Acredito sim numa era (de Aquário! =P) de maior compreensão comunal, e para tanto desapaixonar-nos é preciso. Ou alternativamente, para as belas almas indelevelmente sorumbáticas (danke Schoppe!): através do auto-conhecimento transformar o sofrimento neurótico em infelicidade comum, que era segundo Freud talvez o resultado típico (ideal?) da Psicanálise terapêutica. E tanto quanto interesse a cada um, gostaria de ajudar a reabilitar o ensino de Filosofia e entregar a Psicologia para as massas (tanx Zimbardo). Se lhes interessar, que abracem sem pudor o Humanismo (esse sim um H maiúsculo que vale praticar!).

Em termos naturais pode-se aprender qualquer coisa e dizer que é tudo legítimo, mas isso é apenas uma certa forma de escravidão ao ego e suas compensações, posto que conhecimento também é poder. Acredito que o sentido de *aprender a amar* é o que melhor afina as necessidades interiores (do nosso eu desamparado) e exteriores (contingências sociais), ainda mais num mundo "civilizado". Pode-se ver a vida como uma looonga (ou não, se pensarmos na luz das estrelas) aula em que somos testados, sem ter lido nada na véspera, mas com uma biblioteca repleta chamada CULTURA (salve Google!) - de onde tirei metade disso que estou escrevendo (ok, 90%, humildade em primeiro lugar) - vez após vez a provar nossa fibra moral até desenvolver alguma espécie de sabedoria (ou morrer tentando ou se destruir fugindo). Acho que os valores básicos fundamentais que ela espera da gente são uma mistura dinâmica de coragem, humildade e temperança (salve Aristóteles!). O caminho é a própria pró-cura (valeu Gleiser!). O prêmio, talvez, alguma forma de transcendência.

Com tudo que já disse fica claro que se a genética seguramente tem seu peso (e mal começamos a compreendê-lo) a experiência é sempre fundamental na formação (daí a importância da coragem para encarar o novo). Infelizmente somos regidos não pela razão, mas pelo hábito (tanx Hume), pela crença, emoções e em último caso sempre pelo desejo, nada essencialmente racional. Sobre nossos mistérios disse o Freud (danke Siggy) que todo sonho é a realização (extremamente distorcida para que nos seja "vivenciável") de um desejo. Parabéns pra quem conseguir lembrar-se deles e usá-los sabiamente para se sacar. Só a reflexão tem o poder de atribuir razão às nossas escolhas e implementar duras mudanças. Do contrário estaríamos apenas aceitando passivamente a inércia gravitacional até o fundo do poço. Ou cova.

Não creio que os sentidos são mais determinantes que nossas representações (as "sombras da caverna" de Platão), e talvez alguns arquétipos e estruturas de conhecimento já estejam conosco desde que nascemos, apenas despertamos para elas através da experiência refletida. O debate natureza x criação, racionalismo x empirismo nunca terá um vencedor soberano assim me parece (tanx Matt Ridley).

Se somos seres históricos, uma vida bem-aventurada é efetivamente uma vida que valha a pena ser vivida e contada (aos seus netos? pro mundo no feice? tudo depende da sua vaid..ego :P), sempre que possível usando a cultura (nem preciso dizer que a música, literatura e cinema me salvaram em grande parte né), lendo Hermann Hesse e Philip Roth (valeu Priscila!) e apreciando Fellini, Truffaut, Herzog, Rohmer (Dostoievsky, Tolstoy, Bergman e Tarkovsky para os fortes), viajando pela Patagônia e pela Mongólia (um dia eu chego lá), cheia de distintas EXPERIÊNCIAS inclusive percalços (só pensamos de fato quando confrontados com problemas), com os inevitáveis erros e a eventual REDENÇÃO. Ah, quando não der pra fazer teus pais te ouvirem (e idealmente, pedirem perdão ou se arrependerem de você ter nascido =P, a queda do unicórnio dói pacas) consumir e produzir arte (tanx again Winnicott) vale muito nesse sentido de "ressignificação" (sublimação). Sim, qualquer arte (obrigado Nise!), sobretudo a arte mais íntima e honesta possível (incluindo escrever). Com efeito, como somos bastante sugestionáveis em nossa sede de acreditar e servir a algo ou alguém, "a vida imita a arte", na realidade emula tudo o que se consome (inclusive os programas policiais, cuidado!). Já se disse que a gente se torna aquilo que lê. Precisamos de repertório pra entender o mundo e (re)construir a gente mesmo!

Esse texto aqui é sobre redenção na vida familiar, e essa quanto antes alcançarmos melhor. A auspiciosa consequência é a maravilhosa liberdade interior, prima da solidão cósmica. O sentido subsequente da jornada é a gente que constrói. Bom é poder se jogar no mundo sem peso (isto é, com um mínimo medo neurótico - pânico, depressão etc), com confiança, comungando de alguma forma (de preferência sem se apegar) com quem aparecer no caminho, afinal somos todos cerumanos. Estar honestamente de bem com o passado, curtindo o presente, tranquilo com os futuros possíveis (inclusive até ficando amigo da ceifadeira, na hora certa convidando ela prum xadrex com xerez), ainda que o conto ou epopeia vivida também dependa da sorte (ui). Alguém já viu "Invasões Bárbaras"? Que filme! Minha *morte* dos sonhos está ali...

Como no adulto o senso de identidade está muito cristalizado (viciado), pode ser extremamente doloroso e até intolerável esse processo psicodinâmico de cura (abstinência do drama). Acredito entretanto que adolescentes perdidos em famílias fraturadas poderiam ser os grandes beneficiários de algum tipo de terapia humanista que os ajude a amadurecer no sentido são, que desenvolva sua auto-estima e consequente senso de empatia. Então ajudemos os adolescentes a se revoltar adequadamente contra seus pais, e perdoá-los!

Assim sendo, se você for um fidalgo sentindo-se mal sem saber por quê, talvez (muuuuuito provavelmente) sua auto-estima esteja viciada no padrão de relacionamento ambivalente potencialmente corrosivo de seus pais (aprendido e introjetado inconscientemente até se tornar um hábito, sua própria identidade). Ao trabalho então! Lembre-se de odiar (desconstruindo a dinâmica doentia da relação no caminho) e perdoar seus ícones do passado para eventualmente amadurecer e aceitar sua solidão como um fato natural algo trágico (obrigado Cioran apud Pondé), mas potencialmente redentor (solidão enquanto parônimo de liberdade) e alimentar EMPATIA, toda a empatia que puder aguentar, pois só ela te vacina contra o *ressentimento*, véspera de tantos males físicos e mentais (combustível máximo da pulsão de morte), e com isso se livre de algum câncer pelo caminho (de nada!). Uma vez que superar (a maior parte de) seu ressentimento tenha coragem pra se comunicar empaticamente (em pé de igualdade) com seus pais (ou equivalentes), e se eles se mantiverem na defensiva (orgulhosos=medrosos) perdoe-os mesmo assim. As pessoas não mudam quando queremos, mas quando amadurecem pra tanto. Pra relaxarem as defesas você precisa antes ganhar a confiança deles (lamber as feridas deixadas neles por seus avós), e isso leva tempo, daí a importância da temperança (capacidade de refletir antes de agir, paciência).

Se você já é pai, lembre-se de que nunca é tarde para aprender e exercer humildade (genuinamente pedir perdão para libertar a si e a quem se ama) com seus filhos (se não por outro motivo, porque essa é provavelmente outra vacina anticâncer muito boa). Eles não vieram ao mundo como um presente para você, mas são sim um presente seu ao mundo. Sua missão é prepará-los, suas ferramentas são sua experiência (com seus próprios pais como modelos questionáveis) e seu bom senso (heheheh) desenvolvido a duras penas na sua vida. Essa risada não foi casual: antes de reagir a qualquer *outro* de cuja missa você só conhece um terço (talvez ele esteja mais perdido, confuso e (auto)destrutivo que você, e frequentemente não liga pra própria vida) aprenda a duvidar de si mesmo (o mais constantemente possível) e reconheça suas carências e mágoas mais profundas. Elas não são culpa do vizinho, e tem raízes na sua história: são os (quase sempre imaturos e despreparados) pais que nos jogam nesse mundo sem saber pra quê, e tentando fazer o melhor que podem nos iniciam nos vícios, dos quais o maior é o drama.

Tornando-se consciente e reconciliado com seu passado você terá melhor chance de ser um pai mais leve e coerente para os seus filhos. Goste ou não será sempre um exemplo (felizmente questionável, uma vez que eles estejam maduros), não precisa ser um herói para eles (ou talvez, heroooo just for one daaaay - tanx Bowie, rip). Como diz meu pai (que aprendeu isso intuitivamente com o pai dele): crie seus filhos para que possam ir mais longe que você, no sentido que eles escolherem (se houver a natural identificação os valores e metas acabam sendo beeeem parecidos com os seus, pra bem ou pra mal). O presente será a auto-estima consistente deles, fundamental para encarar o mundo com desenvoltura e trilhar o próprio caminho. Firmeza (não crueldade, que é vingança) e afeto (consistente e suficientemente bom, tanx Melanie) são as mais essenciais ferramentas educativas, e uma não funciona sem a outra. Na dúvida apele pra máxima empatia pra entender que a confusão do seu filho sempre espelha ou replica a sua própria. Não os tema, a revolta é apenas máscara da carência e do medo de rejeição deles (um teste para o SEU amor, sinal do apego inseguro marcado por ambiguidades do passado). Ouça, ouça, ouça SEM "julgamento" (defesas competitivas, o ping-pong da terapia, obrigado dr.Tácito, dr.Yalom) e peça perdão sem pudor (mesmo que nem entenda bem do que eles estão se queixando, todos temos nossas razões) - afinal ninguém é perfeito, e estamos aí para aprender. Quem não se comunica se trumbica (obrigado velho guerreiro). A troca nos bons e a comunhão nos maus momentos deve ser generosa, mas sem mimos (distorções da SUA carência que entorpecem, iludem, viciam). Trate os adolescentes como projetos de adulto (os franceses fazem isso com as crianças também, e aparentemente os finlandeses até com os bebês! =D). Confiar é o oposto de escravizar, procure confiar mesmo que ache que eles vão errar (e desconfie desse seu achar), pois eles tem o direito de fazer merda, como nós e mais do que nós, "adultos experientes". Isso obviamente não quer dizer abrir mão da autoridade - com afeto - e de colocar limites claros. Cumpre conferir em cada fase a máxima liberdade que o grau de *maturidade* (responsabilidade) de cada filho possa administrar (sim, o risco em educar é inerente, como em viver, mas pior que sofrer ou mesmo morrer cedo é viver em *medo*). Sim, o processo é pois dinâmico, nossa visão dos filhos tem necessariamente de mudar com o tempo, embora mais uma vez vários pais esqueçam isso! À medida que eles crescerem vença o medo de se abrir, e eles te perdoarão até mais fácil do que você merece. =P Uma relação saudável é baseada necessariamente em CONFIANÇA, não no poder. O farisaísmo de pais que se julgam donos da *verdade* (sempre furtiva, pessoal) aniquila a autoconfiança dos filhos.

Em suma (e pretendo realmente parar por aqui, já tô com febre, e precisamos dormir - talvez sonhar? - de vez em sempre), aprendamos juntos, pois ninguém nasce sabendo Porra Nenhuma (e morre sabendo uma porrinha). Nossa profunda ignorância (sobre nós mesmos sobretudo) só se torna histeria ou hipocrisia quando não é vigiada pela humildade. Quando te disserem que você pensa demais (me diziam muito isso), não ouça! (Aprender a) PENSAR é importante, antes de agir, e depois da ação mais ainda, pra avaliar o resultado, reparar honestamente as fraturas familiares tapando alguns buracos com amor e limpando o terreno pra próxima aventura de aprendizado. Pra alcançar temperança se necessita da tal presença mental (auto-vigilância), que no início é tipo um grilo falante (grazie Pinocchio), mas se torna natural e intuitiva com o treino. Com perseverança seu resultado será o EQUILÍBRIO interno e externo, a HOMEOSTASE geral da nação. Dane-se a entropia (tânatos, pulsão de morte), vamos viver até os 100 anos, ver o homem pisar em Marte (vai ser massa), ou até o Brasil golear a Alemanha em alguma Copa (o sentido da jornada é a gente que constrói), apreciar a paisagem cada vez mais ampla, curtir "la strada" (da vida) com incansável curiosidade e equilíbrio, e aprender a morrer numa boa (tanx Kierkegaard). Façam a previdência privada! =) E boa sorte pra gente.

Zé Vieira, o filho.


ps: já reparou que DESenvolver-se soa a: oposto de envolver-se? ;)
E envolver-se parece "volver (voltar) em si mesmo", tipo enrolar-se (enganar-se?), deixando os nós e pontas soltas pelo caminho da linha do tempo. O envolvido é um enrolado. Disso decorre que desenvolver-se é desenrolar, retomar o fio da meada de sua História, nosso passado intrincado como um novelo (novela?) de lã, encontrar as pontas soltas e amarrar em algo que tenha peso (tanx Kundera), sentido.

pps: Em última (?) análise, "cerumano civilizado" significa ontologicamente: Tragos sapiens, o viciado em DRAMA (e o "outro" é sempre apenas o coadjuvante necessário), ainda que este drama frequentemente nos custe a saúde e mesmo a vida. A cura básica para todo sofrimento neurótico (psicótico? aí é um pouco mais complexo, embora a fronteira entre ambos seja mais sutil que supomos) está justamente em aceitar o sofrimento advindo da condição humana: solidão e angústia da finitude. Para tanto, Freud, Nietzsche e Heidegger (entre tantos) não tinham Google (que sorte temos!) e mesmo assim tem reflexões muito mais ricas que um post de blogger. Como diria Newton, "enxergamos mais longe quando subimos nos ombros de gigantes". Repertório cultural eleva sua criatividade (capacidade de reprocessar) e amplia suas possibilidades de cura e com ela sua auto-estima. E se você me perguntar as causas originais de sermos assim dramáticos, contraditórios, serei obrigado a responder (que não sei, maaaas porém todavia) que devem estar ligadas aos demônios de nossa natureza animal fundamental. Como entender essa mesma natureza? A resposta está apenas começando a ser estudada, e reside em grande parte na Filogenética do Comportamento. O conflito intrínseco entre nossa herança genética talhada a ferro e fogo no Paleolítico/Neolítico e a atual Civilização (donde o mal-estar na cultura é inevitável). A natureza é sábia demais para a civilização. Não fomos feitos para este mundo, mas para prevalecer ou perecer (vivendo na média uns 30 anos) em um outro muito mais selvagem. Transcender a nossa "prerrogativa original" (seleção natural, um fenômeno sempre coletivo) exige múltiplas reinvenções. Darwin sabia das coisas.

ppps: "Todo transtorno mental é um transtorno do desenvolvimento, sua etiologia fundamental pode ser (filo)genética, mas sua transmissão "educacional" se dá pela experiência da sutil mas persistente ambivalência nas relações fundamentais que espelham e formatam a auto-estima através do apego inseguro, eclodindo o transtorno nos momentos de mudança/individuação. Sua cura reside na busca do amadurecimento pessoal e desenvolvimento da empatia."

3 comentários:

  1. Intrigante e inspirador - e melhor a cada atualização! Keep up the good work! ;)
    Vanessa

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  2. Muito boa sua explanação... e a forma que você aborda as relações pais e filhos. Me fez compreender muita coisa. E o amar e odiar mesmo andando lado a lado, eles não devem nos "cegar", nem idolatrar demais nossos pais... nem os culpar por tudo. Na realidade devemos tentar compreender e acima de tudo perdoar... perdoar os traumas... perdoar as limitações... perdoar e deixar a mente e coração leve. PARABENS pelo excelente texto Vieira!!!

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